quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Don Carlo

Enquanto a rainha lê uma carta secreta do enteado que a ama, o charmoso marquês distrai a princesa e restantes damas com novidades da corte de França.
Aflige-me que a angústia seja o único sentimento que toma conta da rainha.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Margarida ao fim da tarde

É sabido que à hora em que terminam as aulas, pouco apetece fazer. Especialmente se escurece cedo.
Nessa hora que antecedia o crepúsculo e em que Margarida se via enfim livre, apetecia-lhe sentir um pouco de vida que fosse. O vento frio e os automóveis que passavam.
Em certos dias, Margarida fazia um pequeno desvio para regressar a casa. Passava pelos campos desportivos.
Enfiada no seu casacão e acendendo o cigarro num movimento estudado, Margarida enveredava pelo estádio, passando ao longo dos campos onde àquela hora pré-crepuscular, os homens corriam e gritavam. E Margarida passava, num passo lânguido, largando femininas baforadas de fumo.
De vez em quando, lançava um olhar daqueles pouco óbvio ao campo para verificar o efeito. E claro, não se enganava, eles iam olhando para ela.
Era o seu pequeno prazer, daqueles que não revelava a ninguém. Passar por ali àquela hora em que pouco apetece fazer e sentir que despertava a atenção naqueles homens suados e excitados, que a olhavam passando no seu casacão, os cabelos bem-tratados e o cigarro desinteressado, que desprezavam por momentos o jogo.
Arrefecia e eles estavam tão quentes. E ela passando - não mais do que isso -, gozando o papel soberano que naqueles momentos tinha.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

La rue de Lille reconnaisante

O rue de Lille acaba de ser apresentado pela Alfacinha como um dos seus blogs "Para ler ao pequeno-almoço".
A equipa do rue de Lille agradece o louvor a esse blog de alfaces que nos é tão querido. E fica feliz por ter um efeito semelhante ao do Mokambo e do Danao.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Correio das leitoras #2

Comecei a curtir com um gajo mas depois parei. Dava os piores beijos. Sabia a técnica certa, mas tinha os dentes MUITO afiados que magoavam muito! Era terrível porque doía e então fugi. Oh meu Deus, quando é que irá aparecer alguém normal...

Inês Marques, Vila Nova de Gaia (via postal)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Junho

Estávamos no início de Junho, mas o tempo era ainda incerto. Por isso usávamos camisolas de malha sobre as camisas. (Lembro-me bem da tua camisola azul-escura, da camisa branca. Os ténis, deliciosos, eram verdes.)
O refeitório por essa altura era já pouco frequentado, ainda menos àquela hora adiantada, e estávamos sentados perto da janela. A avenida era um rio correndo a nossos pés, os farrapos cor de cinza que iam preenchendo o céu rendilhavam a luz solar. Era início de Junho e por isso tão fácil de fazer da realidade o que quiséssemos. Só porque a ordem do mundo permitira aquele encontro. E eu ali óbvio.
- Queres uma batata frita?
E chegaste o prato sorrindo. Naquela batata mal frita eu via o sentido de tanta coisa, a explicação da metade do mundo que me estava sendo ocultada.
Mas se o tempo era ainda incerto - e aqui reside a questão essencial desta história - antes chovesse. Se havia alguma ordem no mundo, que se juntassem as nuvens que faltavam para que chovesse. Porque mais valia que chovesse e que a tua malha azul ficasse coberta de pequenas manchas. E que eu não estivesse no sítio onde estava, à espera de te ver passar.
(Põe tu aqui um insulto, que eu não consigo.)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Se entrar numa sala e ouvir a sua voz

O problema foi e será ter sonhado em demasia.
A fantasia é um sucedâneo perigoso do sentimento.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O primeiro pronuncia-se

Estou aqui, mas não vai acontecer nada. Lamento. Pode parecer contraditório com a minha presença aqui, mas não é - tinha de vir dizer-lhe isto.
E se digo isto com a chávena de café girando entre os dedos é porque não é fácil vir aqui dizer-lhe isto. Mas sim, tinha de o fazer. Está a rir-se de mim.
A minha condição não me torna capaz de resistir à desconcentração, não tenho esse dom. Quando cheguei ao mundo, já tinha escrito em mim que na escola primária com dificuldade não olharia para os cartazes e toda a papelada e bonecada afixada nas paredes. E que depois, no liceu, seria a janela o meu quadro preferido. Pelo cordão umbilical chegavam-me os nutrientes e esta apetência para a desatenção.
Ri de novo, claro. Contudo, já deverá ter percebido que foi essa companheira de nascença que motivou toda esta situação. Que é essencialmente por causa dela que aqui estou.
Também porque valorizo atitudes como a sua. E até lhe digo mais: estava em casa desocupado e furioso com a vida. Assim, tout simplement. E pensei que mais valia vir aqui dizer-lhe isto. Se não o fizesse ficaria a pensar, a pensar, a pensar, a imaginar, como é próprio de uma pessoa desenhada como eu. Não me parecia ser essa uma boa opção, até porque chovia, e assim é da maneira que corto a imaginação e as fantasias por onde devem ser cortadas.
Porque não pára de me perguntar isso? Se vim até aqui?
A minha justificação é idiota? Concordo. Mas queria testar a sua validade.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Quase tão normal como o sol nascer todas as manhãs

Cada vez me convenço mais de que sou, de pleno direito, um habitante da Cidade Silvestre.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O quarto, o saguão e a chuva

Mesmo antes de abrirmos a porta e entrarmos, eu sabia que havia uma felicidade latente em todos os objectos, prestes a ser feita verdade.
Havia um quarto, nada mais. Um quarto e lá fora um saguão e o céu cinzento. Um quarto que nos pedia que fossemos dele. Se desligar as luzes para escrever, mais depressa me revejo na sua penumbra. Em tudo uma espécie de perfeição, mesmo no estampado da roupa da cama, na não-vista da janela, sobretudo na penumbra. O cenário de tão inaudito era incrível e ele bastava para que eu quisesse ser invejado.
Só por isso, porque dava vontade de uma pessoa se sentar no chão e verter lágrimas; um gesto simples e primitivo, só porque era tudo tão perfeito. Estarmos deitados na cama não era mais do que completar essa perfeição.
Ainda que chovesse durante a noite e de manhã, tudo era bom e bonito e o quarto bastava-se a si próprio, sobretudo pela sua penumbra. Porque das paredes (ao ponto de uma pessoa se querer sentar no chão e verter lágrimas) em vez de algum fungo provável, era amor que brotava. Por isso, tudo era bom e essa etiqueta punhamos, generosos, em cada coisa.

sábado, 30 de outubro de 2010

Correio das leitoras #1

Enquanto ouvia música à saída da faculdade, senti cheiro bom de homem e fiz o jogo do "a próxima música dir-me-á o meu futuro amoroso". O que é que deu? "Too drunk to fuck".

Vânia M., Barcarena (via e-mail)

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Verão que não foi na Beira VII

Não era uma ilha, era uma gruta. Fim da história.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Na varanda, outros ocupantes

Pela sua situação, a varanda permite que as personagens que nela se movem se sucedam umas às outras, como se fosse num palco. Por isso, entraram e puxaram as cadeiras de verga para mais perto da grade, de forma a que cada um ficasse como mais lhe agradava: um ao sol, o outro à sombra com as pernas estendidas.
Sim, estava sol. Mas quanto à vista, mais valia abstraírem-se dela, que nada de muito agradável oferecia. Melhor era gozarem o sol pelo sol e olharem apenas o espaço até à grade. Era até bastante agradável e estavam em condições de falar.
- Parece-me que estou a ver aí um projecto amoroso em construção, não?
Sim. Se até cada um deles estava como queria, um ao sol, outro à sombra de pernas estendidas, aproveitando a tepidez outonal, que mais poderia ser?

sábado, 9 de outubro de 2010

O observado

Passa com o seu passo confiante e de não-quero-saber. Passa com o seu passo e é claro que atrai olhares quando passa, pelo menos um. Quando passa ao longo da sala, por entre as mesas, em direcção ao seu lugar - sempre o mesmo.
O que chama primeiro a atenção é esse passo desempenado quando passa e a roupa, sempre impecável, escolhida para atrair. (Tem de ser para atrair.) Isto para depois se reparar no corpo dentro do vestuário à medida. Depois na cara, enfim.
Claro que passa e atrai olhares. Claro. Pelo menos um.
Não é claro, mas parece quase natural que de tanta gente naquela sala, apenas fale com uma pessoa - sempre a mesma. Só uma. E que fume sozinho na varanda. Porque fuma sozinho na varanda, deixando que os vidros lhe permitam ser observado?
Claro que fuma sem olhar para o interior da sala. Assim como é claro que passa passando, sem olhar, sem querer saber, muito senhor de si, revelando cada dia como o seu guarda-roupa é interminável e tem todas as combinações possíveis e pensadas. Claro que há dias em que passa com a barba por fazer, para atrair olhares, tal como é claro que nem sempre tenha os óculos postos quando passa. Para atrair olhares. Pelo menos um.
Gostaria ao menos de saber se a confiança lhe passa do corpo para a roupa ou da roupa para o corpo. Porque enfim, se passa... Que passe, que passe.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Pedro e Carolina II

Na espécie de guerra fria em que o casamento de Pedro e Carolina se foi tornando, a irmã daquele que fora um dos mais badalados escritores da capital encontrou as suas maneiras de resistir. O que até não é de estranhar, pois ela era ainda a criatura irresistível que por aí se passeava, que punha e dispunha e que o jeito titubeante do médico soubera cativar. O riso de Carolina, a forma que tinha de dizer "não fique atrapalhado, doutor" - isto para recuperar uma frase da noite de máscaras em que se conheceram.
Qualquer biógrafo atento terá de registar que Carolina não deixou nunca de praticar o alemão. Lendo, escutando discos, escrevendo e até, se possível, falando. A explicação é simples: Carolina assegurava-se de que Pedro não tinha acesso a, pelo menos, uma parte da sua vida.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Crónica lisboeta: Pedro e Carolina

Lembrei-me de Pedro Vasques, o médico do Chiado, não tanto pelas suas particularidades, mas pela singular mulher que tomou como sua, Carolina.
A história de Pedro e Carolina começou em 1925 e os seus episódios primeiros foram de uma doçura comovente. Conheceram-se num baile de máscaras dado no palacete que a viscondessa de Lima Campos tinha no Campo Grande.
Nessa noite ela estava comprometida com um outro Pedro, que não a acompanhara. O Dr. Vasques sentiu-se irresistivelmente atraído por aquela beleza, aquele cabelo ruivo, pelo ar tristonho dela. E arriscou falar com ela, num momento em que ela fixava absorta o conteúdo da sua taça de champanhe.
Foi bonito, com a música da banda servindo de fundo à troca de palavras. A abordagem do médico não foi a mais brilhante, facilmente atrapalhável, tendo sido tosco ao ponto de juntar a palavra "médico" no momento de dizer o seu nome. Isso bastou para que ela lhe começasse a chamar "doutor", algo que nunca deixou de fazer. Ela gostou do galanteio, daquele ar meio ingénuo.
É arrepiante pensar que ao fim de poucos anos de casamento, Carolina se apercebera de como Pedro era medíocre. E como se operara nele tanta mudança, ele que antes de a conhecer a ela e à sua espontaneidade, tivera o choque de arranjar uma noiva suicida?

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Chá com Joaninha

Do que eu preciso é que me cantes uma canção. Não uma qualquer, mas uma em particular.
Era nisso que eu pensava quando Joaninha Apolónia decidiu interromper a solidão dos meus dias e entrar pelo quarto adentro. Conseguiu mesmo, ainda não sei bem como, enfiar uma mesinha redonda junto à janela. Uma mesa sobre a qual estava disposta uma comprida toalha branca e um serviço de chá. Não a consegui demover de mudar as cortinas para outras, de um branco vaporoso. A claridade do quarto tornou-se irreal, parecia que estávamos à beira-mar.
Sugeri que mais valia colocar a mesa na varanda, do outro lado do vidro. Não era tão mais agradável?
- Ele que te leve lá para fora. - Foi esta a sua resposta.
Percebi então que havia ali um meio-termo, um ponto de moderação que Joaninha Apolónia não ousava ultrapassar. Porque não lhe competia. E Joaninha Apolónia era uma autoridade nestas coisas, fora colega e confidente de Margarida Cavaleiro. Enfim, sabia do que falava.
Por isso sentámo-nos, tomámos chá e conversámos (mais ela do que eu), sob aquela irreal luz esbranquiçada.
Depois de ter saído ("tem paciência"), só as migalhas sobre a toalha e o fundo das chávenas amarelado. E aí - o quarto ainda cheirando aos vapores do chá - decidi que era inútil lutar contra a decisão já tomada. A de esperar por ti, para que me cantasses a canção, me levasses lá para fora.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Acerca da identidade sentimental

(Para V.)

Reporto-me à história do minhoto que diz ao outro à saída da Exposição do Mundo Português (Lisboa, 1940): "agora tu já sabes o que é ser português".
Eu tinha uma exposição maior para mostrar. Mas desvalorizei à partida a busca da identidade nacional, pois por mais que procurasse apenas encontrava peças de uma outra identidade, praticamente tropeçava nelas. Fosse num antigo palácio real, numa exposição comemorativa, num eléctrico centenário ou num cinema municipal, nada me dizia (e até podia dizer) portugalidade. Eu apenas descobria a construção da identidade sentimental.
Por isso, nem sei se alguém ficou a saber o que é ser português. Eu, pelo menos, fiquei a saber outra coisa.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Regresso à casa na praia II

Havia até aquele irresistível toque passadista de comermos em loiça que outrora servira a tripulação e os passageiros do Princesa do Douro.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Regresso à casa na praia

(Para M.)

Talvez porque hoje chove, falo-vos da casa na praia, onde, apesar do Estio, tudo era humidade.
Os mesmos odores, os mesmos sons. E o mesmo quarto ao fundo do corredor, mantido no penumbra. Os ritmos abrandam nesse reduto de calma. Há placidez conducente a uma espécie de felicidade em todos os gestos, estar simplesmente deitado sobre a cama é algo impossível de ser desvalorizado.
E depois, à vinda, após nos termos sentado em redor de uma mesa com tarte de maçã para seis, o tempo estava assim, cinzento.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A luz das lanternas

O estabelecimento tinha um pátio fechado e tudo parecia roxo. A única luz provinha de lanternas de papel vermelho e branco e havia almofadas por todo o lado. (Parecia que a equipa do Querido, mudei a casa tinha passado por ali.)
- Traga-me um x, por favor. - isto foi dito à empregada, cada um cumprindo o seu papel.
Porque de outra maneira seria difícil gozar a luz das lanternas ao ar livre, naquela noite quente de cidade alentejana. Tudo certo. Era imperativo que assim fosse, que tudo estivesse nos devidos lugares, cada um cumprindo o seu papel: a empregada, as paredes roxas, o céu estrelado, as almofadas, nós.
Apenas para sentir. Qualquer movimento brusco é interdito.
- Mas como tu, acho que não encontro outro. Por isso promete-me...
Eu calado, nada mais. Desejando que as luz das lanternas de papel, o quase-rumor da conversa vizinha e a brisa soubessem expressar a minha gratidão.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Heranças


Herdei da minha mãe o apego ao Estado, à lei e às instituições.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O Verão que não foi na Beira VI

O novo cenário a que eu me referia era um daqueles apartamentos sempre na penumbra e a cheirar a passado, daqueles que existem na Lisboa de Ressano Garcia. Determinados romances portugueses gostam até de colocar no interior desses apartamentos alguma velha tia.
Mais exactamente, o cenário em questão era a sala. Nessa sala foi-me feita uma oferta: "venha conhecer a ilha", disse ele. Sim, depois desse percurso que começara numa escadaria numa tarde de calor e que recordo com especial carinho, convidava-me a conhecer a ilha.
A ilha devia esse nome à sua extraordinária localização. Estava a vários metros de altura, fazendo com os ruídos do exterior apenas chegassem em surdina. Mas sobretudo, todas as suas janelas davam para o mar, do qual se avistava uma larga faixa. Não estou certa de conseguir transmitir-lhe a beleza da vista... É que era possível uma pessoa sentar-se à mesa e só ver mar, mar, mar e algum barquinho que por lá andasse e no horizonte o sol a por-se.
Tem de admitir que um convite para conhecer a ilha era demasiado aliciante.

domingo, 8 de agosto de 2010

O Verão que não foi na Beira V

Espero que o relato não esteja a ser muito confuso. Repare que pouco se passou desde o acontecimento que lançou esta história. E o que me faz sorrir é a semelhança que imediatamente nele descobri com uma cena de um filme, que julgo que até se passava em África.
Como vê, a produção de imagens bonitas está sempre presente, era quase uma obrigação. Isto porque sim, eu buscava a harmonia, mas acabei por concluir que essa era uma busca vã. Decidi então que mais valia preocupar-me com as imagens, já que são elas que - mais ou menos nítidas - vão ficando.
Cedo percebi - como se calhar já percebeu - que as deslocações e os transportes eram um elemento importante nesta história. Cada vez que o via, havia logo um transporte, fosse ele rodoviário ou ferroviário, à espera para levar pelo menos um de nós até outro local.
Pode não parecer nada demais, mas duas horas numa carruagem de comboio ou três percorrendo uma auto-estrada davam espaço ao pensamento. E de pensar estava eu farto.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O Verão que não foi na Beira IV

Nesta que se tornou uma busca incessante de imagens bonitas (ou pelo menos insólitas, ainda que com o seu quê de belo), houve um novo cenário que se impôs.
A espera? Estava a pensar ignorá-la... Não, não se trata de insensibilidade, mas tão somente de utilitarismo. Sim, o jornalista, por exemplo... O que trouxe isso de bom? Nada. A espera resume-se em duas ou três palavras e realmente não vejo onde possa estar o interesse delas. Tanto que, como eu ia explicar, havia um novo cenário a desenhar-se em nosso redor.
Você não desiste... Sim, fui isso tudo o que diz... Evita, Penélope... Sim, eu sei que a Evita é uma Penélope menos fiel. Mas se Penélope tivesse sido uma mulher real nunca teria perdido horas de sono para desfazer o que tinha tecido durante o dia. Minha querida, devia ter feito como todos os outros e deixado de ler livros de mitologia aos treze anos.
Posso continuar agora?

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Estudo sobre Gonçalo II

Passaram-se dias sem que o tivesse visto uma única vez. E nem o seu nome sabia... Não esqueçamos que Doroteia levou uma semana a perceber de quem se tratava. Para além disso, na sua astúcia, ponderou ainda se devia revelar ou não a identidade do jovem à filha do visconde de Lavínios. Nisso, passaram-se mais uns dias até que Leonor fosse informada. Doroteia lá acabou por decidir que mal não faria.
Mas como dizíamos, vários dias se passaram e Leonor sem ver o jovem que na festa tão forte impressão nela causara.
Baseada nas impressões, entregou-se por completo à imaginação. Pegando no que lhe ficara daquela noite de tanta elegância (comprovada pelas referências em vários jornais dos dias seguintes), Leonor dedicou-se a recuperar a imagem de Gonçalo. Os olhos, o sorriso, a voz, a barba. A voz que era tão máscula e suave e lhe soubera falar ao ego e ao coração.
Não se cansou de relembrar as frases que lhe ouvira, os gestos e os olhares. Daí, claro, passou para a criação original de momentos em que o reencontraria. Imaginou os cumprimentos, as várias possibilidades de conversação, até os momentos em que ele se iria rir de algum acertado dito dela.
E já se passavam tantos dias...
Reencontrou-o, sim. E aí a sua imaginação já tinha alterado traços, alguns para melhor, como o desenho do nariz. Mas o que sentiu no peito não deixava espaço para dúvidas: era ele. Ele que no baile lhe falara tão bem ao coração e ao ego.
Mas a isso voltaremos depois.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O Verão que não foi na Beira III

Se estava preparado para reencontrar o jornalista? Digo-lhe já que não, sobretudo por ter sido tão inesperado.
Não foi mais do que isto: virei-me e vejo-o sorrindo para mim. Assim, instantâneo. Sorriu, acenou, sorri, acenei-lhe. Nada mais. Curioso como tal brevidade não deixou de causar o seu impacto.
Como bem sabe, o jornalista em nada está relacionado com determinados acontecimentos recentes, nunca houve sequer escadas em tardes de calor que tenham testemunhado qualquer encontro com ele.
Daí que seja tudo mais engraçado, o reencontro apenas veio enriquecer este Verão que não foi na Beira, tornando mais nítidas as partes envolvidas e tudo o que entre elas está em jogo.
Já agora, pare de lhe chamar jornalista, ele é apenas um aspirante. Quanto a mim, vou interpretar o reencontro como um sinal para deixar de usar chinelos.
(Mas agora diga-me com franqueza: porquê?)

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O Verão que não foi na Beira II

Transportou consigo o torpor daquele quarto de hotel, cujas janelas não tinham o tamanho suficiente e davam para uma avenida por demais buliçosa.
Tanto tempo que ficavam estendidos sobre as camas... depois do pequeno-almoço, antes do jantar, moles sob o ronronar do ar-condicionado.
Sim, transportou-o. Porque se deixou essa cidade de ócio, as questões cujas respostas tentava encontrar espelhadas na superfície do rio não dispersaram. Daí que tenha transportado o torpor. Que fazer face às questões insoluvéis senão dormir?

terça-feira, 6 de julho de 2010

O Verão que não foi na Beira

Para aceder à cafetaria, tem de descer à cave, como bem sabe. Pela porta que fica no corredor das exposições (também ele teve a sua importância). Desça as escadas, é por aí, de certeza que até consegue ouvir alguma voz, a máquina do café chiando e as chávenas tinindo. Se às tantas ouvir passos que se aproximam, tanto melhor, apenas se aproximará mais da realidade. Essas escadas que fazem esquina e são iluminadas por uma janela rectangular de vidro fosco.
É a velha questão da sobrevivência das coisas imateriais, como já vimos pisando e repisando. Se as memórias se extinguirem, extinguem-se aquelas escadas relativamente frescas que fazem esquina, no preciso momento daquela tarde de excepcional calor.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

"Get, pois"

Nem sequer estamos numa cidade tropical. Essas fantasias sequenciais de gordos e jornalistas não fazem sentido.


"Laisse ces désirs éphémères
à la porte de ton couvent."
(Manon na ópera Manon, acto I)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Domingo

Roupas frescas. Um passeio, pastéis de Belém. Um livro novo de capa bonita.
Tudo calmo. Tudo calmo.


"En un jour ici bas, tout s'efface et s'envole"
(Ophélie na ópera Hamlet, acto II)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Du gai soleil

Deixa-me sentar ao teu lado. Para falarmos.
Fala-me de livros, do que quiseres. Desde que tragas esse olhar.


"Vous entendez, monsieur Werther,
je vous invite pour le premier menuet."
(Sophie na ópera Werther, acto II)

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Estudo sobre Gonçalo: o início

O início tem a sua beleza. Tanta quanto o brilho das iluminações no palacete do visconde de Lavínios, naquela noite palco de festa.
Já sabemos que depois de ter deixado a tia num quarto escuso, numa tentativa meio parva que o pai engendrara para a manter afastada da festa, Leonor entrou nos salões.
Sabemos que o primeiro contacto foi com o olhar. Já Agustina disse que é ele quem primeiro peca, nada de novo.
A novidade estava naquele rosto que Leonor achou admiravelmente belo. E os olhos... tão vivos. Falaram, ele foi afoito o suficiente para que tal acontecesse, mas não disseram os nomes.
Por isso, na manhã seguinte, após ter longamente divagado na saleta - onde o irmão dissertava sobre a beleza da rainha, a idade da rainha, a tragédia da rainha - lembrou-se de consultar a criada Doroteia.
Foi naquela manhã em que envergava o vestido de padrão florido. Quem era? Sim, cabelo escuro e digna barba... Doroteia levou uma semana até se aperceber de que o tal jovem era filho do Alves e costumava cruzar-se com ele quando ia ao mercado. Claro que sabia identificá-lo. Ela própria andava rendida àquele olhar tão profundo, àquela barba tão digna. Para não falar no sorriso, cuja adjectivação extraída directamente do vocabulário de Doroteia, nos escusamos de reproduzir aqui.

domingo, 16 de maio de 2010

Jorgices

O dia 15 de Maio de 2010 ficará registado nos anais da nação como o dia em que conheci a Lídia Jorge e ela me disse "deixe-me dar-lhe um abraço".

domingo, 9 de maio de 2010

Salomé

Quero ser a Salomé de Pessoa e sonhar com João Baptista, sem saber se era real ou se apenas o produzira em sonho.

A leve decadência

Havia certos traços no ambiente dela que (desconfiança suburbana em relação a tudo o que foge à regra) não deixavam de me causar algum temor, como a neve artificial das decorações natalícias que ficara por mais de dois anos nas janelas da sala.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

O jardim

Ontem pensei no que o sol já significou. Lembrei-me das tardes em que íamos para o jardim da zona de vivendas. Que engenheiro autárquico ou construtor civil teve um acesso de génio e colocou aquele perfeito quadrado de relva com gravilha, arbustos e bancos entre as vivendas desafogadas e burguesas? (A prova de como um director de obras municipais ou um empreiteiro podem ter tanta importância na vida das pessoas.)
Estava tudo tão vazio e soalheiro. Era Primavera e serenidade.

domingo, 25 de abril de 2010

O baile do governador V

Ó menina... não sei se lhe chame ingénua, se engraçada. Foi uma história bem triste essa a da Rosinha, mas não pense que foi por isso que a Beatriz lha contou.
Foi uma noite bonitinha apesar de tudo, teve o seu brilho. Mesmo não passando de um baile de província. Nem o Carlos Bento, o presidente da associação de lojistas, o primeiro a criticar o evento, faltou. Ah sim, que nunca vira coisa mais desapropriada, a de um baile dado pelo governador civil em demonstração de apoio da região ao governo, um desrespeito pelos valores, isso tudo. Pois também ele lá estava, com a sua melhor casaca, desfeito em amabilidades para com a mulher do governador. Todos iguais...
A sua mordaz amiga não poderia ter mais razão nas suas divagações em torno do jovem tenente e dos seus aposentos virados a poente. Sim, uma beleza, um deus - atrevo-me a dizer. E aquele olhar... Tão cheio de algo que nem consigo explicar. Nem eu que já vi tantos lugares e tantos homens diferentes por esse mundo... Digo-lhe, poucos terei visto que igualassem esse oficial em aparência, simpatia e timbre de voz. (Ouvi voz bem preciosa a um cónego em Luanda... Que voz... Que homem... Mas era padre.)
Mas a verdade é que a Beatriz é uma desalmada, não pára quieta. Não foi este o primeiro. Andou aí perdida de amores pelo último governador da monarquia. E sendo mulher do presidente da câmara e tudo, que bonito fica.
Não, não vou voltar agora ao cónego de Luanda, não vem ao caso... Essa desalmada é que é perigosa. Sua ingénua... Então não percebeu em tudo o que ela lhe contou sobre o tenente Zeferino Serrano - descrições muito pormenorizadas pelo que vejo - que estava apaixonadíssima por ele? Odiava a filha do Dr. Gonçalves de morte, claro. Tanto que ficou feliz por ele ser chamado a combater.

sábado, 24 de abril de 2010

Dos leitores.

Hoje ao almoço falávamos de como é difícil encontrar alguém que goste de livros.

"À demain, à demain..."
(Sophie na ópera Werther, acto I)

diálogo #1

Na biblioteca.

T: Desculpa, ainda vais precisar desse livro?
C: Sim, ia requisitá-lo.
T: Ah...
C: Ah, tu não és o amigo da D?
T: Sim... Mas então vais requisitar esse livro?
C: Estava a pensar fazê-lo. Mas preferia requisitar-te a ti.

O tiro

Estou obcecado com essa imagem. O tiro.

Quem o dispara? Quem o dispara?

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Considerações de segunda-feira

Uma daquelas paixões à la Ema Paiva, um pouco fúteis, como pelo amigo de Pedro Dossém de chapéu à Gene Kelly: "esteve apaixonada durante uma semana, a pensar nisso".

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E Luís - a mãe sabia-o - que preferia não pensar no amanhã a pensar e não o querer.

domingo, 18 de abril de 2010

O subúrbio fino e feio

Era de noite. Se Leonor e Gonçalo se tivessem sentado naquele banco, tê-lo-iam feito com mais aprumo. Muito direitos, muito correctos. Mas, claro, os tempos eram outros e eles estavam apaixonados.
Por isso nós não nos sentámos direitos e correctos.
A referência de um remoto casal oitocentista torna-se aliás absurda: essa imagem vale pelo que vale, sem qualquer significado segundo, apenas por ser bela.
Tão bela como a de um banco de jardim num pequeno largo de bairro residencial, à luz intermitente de um candeeiro eléctrico. Até que choveu.
Uma chuva calma e agressiva, própria da estação e do ditado popular, caindo direita. E nós no alpendre de um prédio, atirando cigarros às poças. Víamos chover e chovíamos com ela.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Danse macabre

Podes vir à hora que quiseres, mas eu prefiro o crepúsculo.

sábado, 10 de abril de 2010

Pequeno apontamento


(A Lídia Jorge é um amor.)

domingo, 4 de abril de 2010

Carta de José a seu irmão Álvaro

"(...) fiquei muito contente com a M. A. [filha de Álvaro] que me enviou um postal de boas-festas. Ela e a F. [filha de José] foram as únicas que se lembraram de mim, espero que por muitos anos."

Janeiro de 1975

terça-feira, 30 de março de 2010

La fumée

Já não quero saber do indivíduo turbulento que observa o mar calmo.
Se um dia esse indivíduo fui eu, já não quero saber dele.


"C'est le ciel qui m'envoie..."
(Helena na ópera A Bela Helena, acto II)

segunda-feira, 29 de março de 2010

oui, c'est un rêve

A felicidade cândida dos pãezinhos de leite.

sábado, 20 de março de 2010

Et pour poser sa tête...

Descobres que andaram a fantasiar contigo à beira-rio.
Se não fosse tão pornográfico e demente, seria quase Ofeliano.

quarta-feira, 3 de março de 2010

outras duas mulheres.

Criaram o hábito de passar as tardes juntas. Procurando um qualquer cafézinho novo para se sentarem a falar, experimentando um cocktail ou uma loja.
Mas o seu programa preferido era ficarem em casa, estendidas nos sofás claros da sala. Não resisto a pensar em Daisy Buchanan e Jordan Baker nos seus enormes sofás brancos. Deve haver poucas coisas com tanto encanto como duas mulheres juntas. A pronunciarem frases soltas, um pouco caladas e dormentes. Bebem vermute e fumam cigarros. Há um riso. É quase preocupante, tanta despreocupação.
(Mas irremediavelmente belo.) A claridade branca das venezianas descidas protege-as dos ruídos do exterior.
Não lhes mexam. Enquanto houver vermute nas garrafas, estamos bem.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

El periodista

Pensei que, por birra, iria ouvir Granados o dia todo.
Mas estou a preferir o quarteto de cordas n.º 12 de Dvorak.


"El sitio y la hora son, pero él no vino a mí..."
(Rosario na ópera Goyescas, parte I)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Aquele pedaço de rua

O cenário é perfeito para uma descarga de vida matinal. Naquele pedaço específico da rua, em que há edifícios baixos dos dois lados e ilhas na estrada para largada e tomada de passageiros dos eléctricos. O movimento contínuo dos eléctricos lembra a vitalidade das coisas. Tanta gente passando naquele pedaço de rua àquela hora, graças à proximidade de uma plataforma intermodal.
E, do arco que se abre num dos lados da rua, surge um sorriso interessante. Deve ser o sol frio e o céu azul que proporcionam este tipo de pensamentos mais bonitos, num cenário de si já tão perfeito de urbanidade. A campainha dum eléctrico. (Sim, passa um ou outro autocarro, mas o encanto do eléctrico e da sua campainha é consensual.)
Como já tentaram outros antes, estava a tomar a liberdade de alterar pequenos pormenores. Não, não o cenário, esse é pela terceira vez perfeito. Felizmente o movimento contínuo de eléctricos e pessoas lembra - prova - a vitalidade das coisas, apesar de um sorriso mais ou menos fictício.
O lirismo dos espaços urbanos.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A varanda II

O odor da sala de leitura é singular e o seu silêncio nada tem a ver com os sons da manhã que chegam ténues àquela varanda lateral. Também porque há dois homens que falam na varanda. Um deles - o que fuma - parece falar mais, continuamente quase. É conversa douta. Falam de investigações, abordagens, temáticas e correntes.
Nada que interesse naquele momento ao jovem que observa a rapariga do outro lado do vidro. Um espectador mais perspicaz pode imaginar que toda uma história (que permanece desconhecida) se passou entre os dois. Entre o rapaz murcho e observador e a rapariga que no silêncio é metódica nas suas leituras e anotações.

domingo, 17 de janeiro de 2010

A varanda

A biblioteca tem uma varanda, à qual chegam os ruídos matinais da cidade e dos pássaros. A sala de leitura está silenciosa e uma rapariga trabalha diligente, sem reparar sequer no jovem que a olha do outro lado dos vidros da varanda.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

o choque da realidade

Estou a ouvir a Leonore e o Florestan: acabaram de se reencontrar. Há dias chovia. E nós falávamos de sonhos não concretizados.

domingo, 3 de janeiro de 2010

ano novo

Acho que também eu busco a harmonia.

"Je l'ai vue à travers mon rêve,
Dans la lande aux souffles de feu"
Vincent na ópera Mireille (acto V)