sábado, 29 de janeiro de 2011

Carta de Mariana a Julião

Caro sr. Julião,

Parti esta manhã. Sabendo que não o veria mais, mas não querendo que ficasse sem saber o efeito que em mim causou, decidi escrever-lhe.
A primeira vez que o vi foi na sala de jantar. Vi-o sentado à mesa, a escutar um outro homem. Fique sabendo que me causou forte impressão essa visão em plena sala de jantar, entre o leve tinir dos copos e dos talheres. O seu rosto arredondado e a sua barba espessa apesar de rente prenderam-me a atenção. Ali, à luz branca das cortinas.
Nos dias seguintes ficava toda contente se me cruzava consigo no corredor ou nessa mesma sala de jantar. Era a barba.
Pois esta carta tem um propósito específico, contar-lhe exactamente o que se passou há duas tardes atrás. Entrei vinda de um passeio que dera até à Sé e eis que o vejo num dos sofás da entrada, adormecido. O jornal aberto sobre os joelhos, a cabeça caída levemente para trás. A entrada vazia, o rapaz da recepção desaparecido. Aproximei-me.
Quando estava já muito perto, não resisti e estendi a mão. Afaguei-lhe a barba, sentindo-a tão forte, tão densa, tão negra sob os meus dedos. Gostaria de ter deixado os meus dedos afundarem-se nela, na sua barba, mas temi acordá-lo. Então afastei-me. Tremia.
Era isto que não queria que ficasse sem saber, que me aproveitei de um momento de sono seu para deixar que os meus dedos se deliciassem com a sua barba tão negra e espessa e da qual eles ainda conservam a memória.
Estou agora a caminho de Évora e nesta viagem em que venho acompanhando meu pai, creio não ter visto homem mais bem-parecido, com a barba que fosse tão bem com os olhos, o nariz, o sorriso.
Lamento apenas uma coisa: que com essas camisas, coletes e casacos tão chegados ao corpo, os meus dedos não lhe tenham podido tocar.

Creia-me sempre sua respeitosa amiga,
Mariana

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Correio das leitoras #3

Um gajo assustador no autocarro tentou dar-me o número de telefone escrevendo-o no livro que estava a ler e depois quase me espetando o livro na cara.

Joana Lourenço, Loures (via email)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Pátio das Traseiras

Já arrancou o Pátio das Traseiras, novo projecto bloguístico que pretende essencialmente ser um espaço que proporcione reflexão e seja um contributo no combate à homofobia.
Podem encontrá-lo e acompanhá-lo aqui. Vá, é pequenino, vão lá dar-lhe algum amor.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Manhã avançada IV

A minha decisão face àquele hálito sonoro e aromatizado seria escolher se agia em função de alguma espécie de orgulho ou honra ou de acordo com alguma forma de egoísmo que podia muito bem ser concretizada a dois. Fosse como fosse, nunca haveria vencedores nem vencidos. E desse ponto de vista, até era perfeito, sobretudo se pensarmos que tudo estava a acontecer devido a uma boca que cheirava a bosque e a tabaco numa sala escura. O problema, como já foi referido, era apenas meu.
O meu único pensamento para o resto da humanidade foi por causa das idealizações. O seu único defeito era não resistirem ao choque com a realidade. Se não fosse isso, garanto, seriam a criação mais perfeita da espécie humana em toda a cronologia da sua existência.
Voltando à realidade, eu tinha aquela boca e tudo o que ela produzia. Não é sequer preciso pegar nos outros traços mais vagos como eram a cara que essa boca tinha, os pêlos da barba grisalha semeados nas faces, a cor das hastes dos óculos, o corpo que essa boca tinha. Não, nada, se a boca era tão rica como um bloco de papel liso e uma caneta que nele desenhasse.
Sair dali foi o melhor que fiz, mesmo que os vagos contornos do dono da boca se tenham tornado mais nítidos. Saindo, encontrei a luz da manhã, que era em tudo preferível àquela escuridão onde pessoas feias dançavam ao som de uma qualquer música digna de alienados.
Havia um rio e edifícios. E um silêncio marítimo que era em tudo muito bonito, lembrando o resto das coisas. Tudo estava a impor um final àquele drama cómico em três actos protagonizado por um par de lábios que cheirava a bosque e a fumo. Olhando agora, daqui, era até incrível o seu poder. Mas depois chegara à sala dos mais-que-usados em saldo e ditara o seu próprio fim. Se bem que até isso fosse incrível... Fica isso, não mais do que isso, o cheiro forte, fortíssimo, a tabaco e a floresta - um cheiro falante - e uma réstia de poder.
Porque depois do sol (felizmente fazia sol), do rio e dos edifícios, foi a campainha dos primeiros eléctricos que passavam. Lembrando as coisas e a sua vitalidade. E senti que, pelo menos naquele momento, já nem queria saber do pratinho da desilusão que os homens gostavam de ir servindo.

Manhã avançada III

Ele falava. Desde o início que falava e nisso, realmente, a profissão de comunicador social assentava-lhe bem, na perfeição. E claro que começara por ter a sua graça naquele sítio tão desagradável. Convenhamos, ele falava bem (era um comunicador) e assumira a sua posição naquele fim de noite com algum encanto. Senão também não o teria deixado falar.
Mas a dada altura, quando o sol já declarara a manhã irrevogável, a desilusão era o meu problema, real, palpável. Creio que é sempre com algum terror que se faz semelhante constatação. Devia haver algum decreto, alguma lei, uma mísera portaria ministerial que fosse, que proibisse a desilusão.
Era inútil procurar respostas na minha lista de referências e suas atitudes em relação ao sexo e aos sentimentos porque aquele problema era meu. João não parecia ligar a nada, Margarida sabia quando via um homem e o queria ou não, Júlia Grei era já uma referência demasiado pesada para a tentar dissecar àquela hora da manhã, com tantas horas sem dormir e com tanto álcool ingerido. De nada me servia pensar neles, se a minha sina parecia ser comer desilusão da tigela que eu voluntariamente estendia a cada homem e cada homem com diligência enchia.
E isto porque a boca fragrante permanecia aberta, expelindo palavras atrás de palavras de louvor a mim, a ele, aos dois.
Dado o problema, uma coisa me restava: decidir.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Manhã avançada II

Pouco provável seria que as palavras de Margarida não fossem essas. Se Margarida caminhava pelo estádio ao fim da tarde para se fazer admirar pelos homens suados que jogavam futebol, era claro que diria aquilo. Simplesmente porque sabia o que fazer. Para ela não havia segredos, jogos, segundos sentidos.
De certa forma, para mim também não haveria segredos naquela noite que já ia demasiado longa, que já se transformara em manhã. Digo isto porque se naquela sala horrivelmente escurecida, cheia de pessoas feias e música atroz, houvesse uma mesa de tipo hospitalar e o dono da boca que me falava (sim, era um hálito com dono) sobre ela se deitasse, tirasse todas as suas roupas e alguém me passasse para a mão o conjunto dos seus exames clínicos, eu ficaria igualmente esclarecido. Porque o hálito falante não se poupava a pormenores, todas as suas palavras eram claríssimas e não havia forma de eu não ficar a saber tudo sobre ele e as suas intenções.
Por isso digo que não haveria segredos também para mim. Mesmo que eu não quisesse.
Mas eu tinha um problema. Eu achava que não tinha nascido para entender os homens. Porém, eles próprios faziam por serem completamente óbvios, o que me deixava uma questão. Seria eu que, nalguma espécie de pena bizarra, fazia por esquecer aquela intrínseca simplicidade masculina? Dava-lhes eu esse benefício para não ter como única alternativa desprezá-los?
Entretanto aquela boca falava sempre, eu sentindo o hálito cada vez mais próximo e sem ter ainda chegado a uma conclusão, por mais simples que fosse. Nem pensando em João, em Margarida ou na minha suposta ancestral Júlia Grei. Tenho a certeza que, para ela, o imediato da sensação e do sentimento era o mais importante. Isso angustiava-me. E ia deixando-o falar.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Manhã avançada

O traço mais marcante, aquele que melhor recordo, será o hálito, que cheirava a tabaco e a qualquer coisa de "florestal", uma estranha mistura de madeira e plantas.
À falta de sentido mais apurado àquela hora, eu tinha um hálito que comigo falava. Talvez seja mais correcto dizer que me falava porque a minha participação no diálogo era quase nula, quase desnecessária.
Faço disto um exercício de escrita, mas sei que não conto apenas por contar. Encontro-me, sim, dividido entre a fixação um pouco obsessiva de detalhes e a cristalização de um momento como exercício de observação (eu sabia que nunca poderia ser apenas de escrita).
Cenário e figurantes nada tinham de interessante, eram até bem deprimentes. Mas eu tinha aquela voz aromatizada que me falava, aquele par de lábios que me transmitia ideias ao ouvido, e só por isso o momento já tinha o seu valor.
Enquanto ouvia, pensava em João e no que faria João se estivesse naquela situação. João era a pessoa que eu admirava e que, em parte, gostaria de ser. Daí eu pensar em João.
Porque para João tudo era muito fácil. João saía de casa com Margarida por um braço e um termo cheio de gin com laranja no outro e depois iam sentar-se num relvado do jardim próximo, bebericando de chávenas de plástico colorido.
Mas porque pensava em João naquela sala escura, àquela hora da manhã? Preferi concentrar-me no facto de ser eu quem tinha um homem que me falava com todo o à vontade e que por mim parecia disposto a esquecer tudo. Expunha-se demoradamente, com paciência e precisão, e em toda a conversa desabrida, havia subtilezas que iam tomando conta de mim, como se fosse o seu próprio braço a rodear-me a cintura. Eu ouvia-o e não me parecia nada descabido pensar se não seria eu o herdeiro natural de Júlia Grei, essa jovem mulher que vivia um pouco segundo o ritmo que os homens e os seus desejos lhe iam impondo numa Lisboa pós-revolucionária.
Era algo que eu nunca contaria a João, porque adivinho a cara de desprezo e sobranceria que me lançaria. E eu não queria uma cara dessas vinda de João, muito menos tratando-se de uma história em que um homem com todo o encanto se aproximava perigosamente do meu olfacto.
Com Margarida também não contava partilhar o episódio. Porque ela me diria: "sabias o que fazer".
Agora, fico-me por aqui.