sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Manhã avançada

O traço mais marcante, aquele que melhor recordo, será o hálito, que cheirava a tabaco e a qualquer coisa de "florestal", uma estranha mistura de madeira e plantas.
À falta de sentido mais apurado àquela hora, eu tinha um hálito que comigo falava. Talvez seja mais correcto dizer que me falava porque a minha participação no diálogo era quase nula, quase desnecessária.
Faço disto um exercício de escrita, mas sei que não conto apenas por contar. Encontro-me, sim, dividido entre a fixação um pouco obsessiva de detalhes e a cristalização de um momento como exercício de observação (eu sabia que nunca poderia ser apenas de escrita).
Cenário e figurantes nada tinham de interessante, eram até bem deprimentes. Mas eu tinha aquela voz aromatizada que me falava, aquele par de lábios que me transmitia ideias ao ouvido, e só por isso o momento já tinha o seu valor.
Enquanto ouvia, pensava em João e no que faria João se estivesse naquela situação. João era a pessoa que eu admirava e que, em parte, gostaria de ser. Daí eu pensar em João.
Porque para João tudo era muito fácil. João saía de casa com Margarida por um braço e um termo cheio de gin com laranja no outro e depois iam sentar-se num relvado do jardim próximo, bebericando de chávenas de plástico colorido.
Mas porque pensava em João naquela sala escura, àquela hora da manhã? Preferi concentrar-me no facto de ser eu quem tinha um homem que me falava com todo o à vontade e que por mim parecia disposto a esquecer tudo. Expunha-se demoradamente, com paciência e precisão, e em toda a conversa desabrida, havia subtilezas que iam tomando conta de mim, como se fosse o seu próprio braço a rodear-me a cintura. Eu ouvia-o e não me parecia nada descabido pensar se não seria eu o herdeiro natural de Júlia Grei, essa jovem mulher que vivia um pouco segundo o ritmo que os homens e os seus desejos lhe iam impondo numa Lisboa pós-revolucionária.
Era algo que eu nunca contaria a João, porque adivinho a cara de desprezo e sobranceria que me lançaria. E eu não queria uma cara dessas vinda de João, muito menos tratando-se de uma história em que um homem com todo o encanto se aproximava perigosamente do meu olfacto.
Com Margarida também não contava partilhar o episódio. Porque ela me diria: "sabias o que fazer".
Agora, fico-me por aqui.

2 comentários:

Luísa A. disse...

Devia haver um livro inteiro das histórias intimistas e secretas desta personagem. Adorei. Intrigante e envolvente. Só no fim da leitura é que percebi que estava a conter a respiração.

Anónimo disse...

"Mas eu tinha aquela voz aromatizada que me falava"