sexta-feira, 22 de julho de 2011

De manhãs de luz e mistério

Ao contrário do que possa pensar, é na ausência de informação que encontramos mais espaço para falar ou escrever. Imagine que conhece uma meia dúzia de factos, uma meia dúzia que lhe deixa metros de lacunas, de espaços em branco. É aí que a criatividade tem lugar. Coloque trinta hipóteses, mais cinquenta variáveis. Agora pense em todas as possíveis ligações e justificações. Pode ficar a divagar sobre isso durante horas. Eu sei, já me aconteceu.
Sei que havia uma pessoa num automóvel vermelho no lugar do condutor, que não era eu. Apetece-me dizer-lhe que o meu vestido é que era vermelho, uma cor associada a um certo feminismo tido por imoral e potencialmente mortal. Mas não, o meu vestido não era vermelho, nem interessa de que cor era. Nem a do automóvel, para dizer a verdade.
Penso apenas nesse automóvel que saía da Praça das Flores ao final da noite. Sei o nome do condutor, a idade, o que faz. Sei do peso triste que carrega nos olhos quando me olha. Eu estava nesse automóvel vermelho e tentava sorrir aos olhos tristes.
Sei que ele me disse tanta coisa nessa viagem. Disse-me tanto que no fim de contas não era nada. Porque a tristeza do olhar era o que me interessava, era o que me mantinha longe dele. Apesar de estarmos sentados um ao lado do outro. Veja os espaços em branco: eu estava ali por convite do condutor, mas não havia uma coerência ligando o convite, o motivo ou a consequência da viagem iniciada na Praça das Flores. Nada. Só uns olhos tristíssimos, e elogios repetidos; a incoerência fascinando-me, atraindo-me. Como quando conhecera aquela figura que agora me conduzia, meses antes.
Sim, eu conhecia-o. Era a terceira vez que nos cruzávamos, intervaladas por meses. Esses meses também eles espaços em branco, lacunas. Mas as lacunas interessavam-me. Talvez por isso tenha entrado naquele carro.
Eu sabia o trajecto, a viagem era curta, em breve chegávamos ao sítio onde me deixaria. A manhã começava e uma pequena ideia - pequena, pequenina - de romance instalou-se no interior do automóvel. Mas ainda ali, olhares, palavras, convite, viagem nada tinha coerência. Só um mistério de olhos tristes. Tristes, tristes, tão tristes que ameaçavam lacrimejar. Mas um mistério, uma incoerência que não se deixava revelar.
Ficava-me o pensamento para aquela manhã fria (sei que era fria porque tinha vestido uma malha por cima do vestido) mas já cheia de claridade, quando saltei de um automóvel vermelho que criava aquela pequenina imagem de romance. Era tão pouco e ao mesmo tempo tanto. Pelas lacunas enormes entre cada palavra, cada gesto, cada olhar daquele bicho de tristeza humana.
Talvez a cor interesse afinal. Porque concreta. O meu vestido era cinzento, o automóvel era vermelho, a manhã era azul. Eu gostei desse momento. Concretamente. Concretamente lhe digo que despojado de tanto elemento desgarrado, era uma manhã de Verão que começava à luz de uma claridade ainda fria. Mas de uma beleza tocante, direi.
Eu sei de bichos tristes e incoerentes, sei de lacunas e espaços em branco. Sei que há uma espécie de proto-classe profissional - os historiadores - que se divertem com esses espaços em branco, com a ausência de documentação. Ou então desesperam-se com ela.
Daí essa minha alusão ao concreto. Pois quem não quer se encontrado, não o é.