domingo, 18 de outubro de 2009

O baile do governador IV

Por isso até agora concordámos já nas insondáveis vontades e motivações desse belo tenente que um dia trouxe novo brilho a esta cidade de província. Recorda-se a minha amiga da sua primeira aparição oficial? Naquele sarau de gala do Municipal. Exactamente, esse em que o Nunes da flauta atacou por engano o Hino da Carta em vez d'A Portuguesa! Que impressão causou... O tenente, não o Nunes da flauta!
Pois dera ele, com aquele incrível bigode, a prestar-se a idílios com a Rosinha Gonçalves e depois entrar em reclusão. Não, realmente isso não se faz! Vá-se lá compreender os homens, ainda para mais loiros e de ar sensível. Acredito que a minha amiga prefira aqueles que sabem o que querem e pode estar certa de que não é a única.
Mas a surpresa da noite estava para acontecer. Algures entre uma dança e outra, o tenente Zeferino - que todo o serão ali estivera quieto - aproximou-se da filha do Dr. Gonçalves e agarrou-lhe a mão, causando na moça forte impressão. Quem não sentiria, aquela mão tão masculina e delicada agarrando a nossa!
Pois agarrou-a e afastou-se com a jovem. E parece que falaram. Parece que ele finalmente se decidiu e escolheu aquela noite de baile para lhe comunicar a decisão: queria ficar com ela.
Não era um desenlace tão feliz? Claro que era...
Mas tivesse ele sido mais homem e menos filósofo e teria estado mais tempo com ela. Eu gosto muito dela, mas não consigo deixar de sentir algum regojizo por ele ter sido no dia seguinte destacado para a guerra.

O baile do governador III

Compreendo porque a cativa tanto a imagem do tenente sonhando antes da chegada do crepúsculo e fico feliz por se sentir cativada. É uma imagem bonita e se carregar bem no brilho do laranja, quase que se consegue imaginar naquelas salas de escassa mobília com ele.
Demoro-me demasiado nessa cena inegavelmente bela? Creio que não falo apenas por mim se disser que na noite do baile do governador dava vontade de ficar parada a adivinhar-lhe o desenho do corpo sob o uniforme e os galões. Exagero?! Vou parar então, sua púdica! Mas com aquele corpo, benza-o Deus.
Avancemos para o cerne da questão: a Rosa. Agora até rio a pensar que todas estas fantasias cor-de-laranja não foram mais do que uma nota introdutória que se prolongou.
Sim, a Rosa, a filha do Dr. Gonçalo Gonçalves. Ela e o tenente Zeferino Serrano estavam apaixonados. Apaixonadíssimos, diria mesmo. Um amor jovem que nasceu de esporádicos contactos.
Não reparou como na noite do baile entrou no salão tão simpática e arrastada? Pois pudera, coitada! É que ele, o tenente, muito apaixonado, mas também muito de meditações, de repente toca de se achar confuso e de se afastar. Percebe agora porque lhe falei daquela imagem que tanto a cativou? Praticamente sem dizer nada, deixou de falar à rapariga e é provável que se tenha fechado na suas salas viradas a poente.
E ela tão tristinha no baile, ali vestida de rosa, a vê-lo na mesma sala. E ele que lhe evitava o olhar, o estúpido.

O baile do governador II

Estou eu a dizer-lhe, o tenente Zeferino era uma pessoa complicada. E não sou a única a achar isso. Vá lá, até o outro tenente - não me lembro do nome - o dizia.
Que era muito bem-parecido, uma lufada de ar fresco nesta cidade, lá isso era. E naquela noite do baile do governador civil... Um verdadeiro príncipe em uniforme de gala. Não me vai dizer que também não achou isso, aqueles cabelos tão apetitosos que pareciam trigo?
Mas também tinha as suas manias, garanto-lhe.
No quartel tinha ao seu dispor duas salas... E ficava horas lá fechado. A pensar, a pensar. Parece que gostava de ficar a ver o pôr-do-sol da janela, quando ficava tudo tão laranja à maneira de uma explosão de tépida felicidade. Sim, depois do quartel começa a planície, pode calcular como era largo e laranja o cenário, tanto o que a vista dele podia observar enquanto pensava. Em quê não sei ao certo. Mas ele era tão bonito, que quase nem importa. Imagine-o só, ali muito parado, muito sério, com aquele olhar muito azul e aquele bigode muito loiro. E tente só retratá-lo nessas meditações alaranjadas envergando aquele uniforme tão luzidio da noite do baile.
Pois, não é preciso dizer mais nada.