sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Alberto por Margarida

Alberto. Margarida observando Alberto. Margarida conhece os gostos musicais dele e sabe que são bons (ou seja, compatíveis). Margarida não gosta dos ombros estreitos de Alberto. E observa.
Alberto falando com José em animado diálogo, nem parece muito preocupado com a ausência prolongada de Joana. Que é a namorada de Alberto, claro está.
Joana acaba por aparecer, estivera na rua fumando com outros. Decidem depois meter-se os quatro num táxi e quatro euros depois chegavam ao destino. Margarida sabe que Alberto e Joana tinham planeado outra coisa, mas estão ali agora, com ela e com José.
Alberto e Joana caminham à frente e Margarida observa-lhes as mãos dadas. Margarida no seu casacão, lançando baforadas de fumo do seu cigarro, enquanto José ao seu lado fala, fala... e ela concentrada nos ombros estreitos de Alberto, que deviam ser mais largos para dar o toque de charme que faltava à personagem. Isto pensava ela.
O sítio era escuro, escuríssimo. E Margarida perguntava-se porque estaria Alberto ali com Joana. Joana ria, simpática e galhofeira. Alberto de vez em quando desaparecia, indo passear a sua barba pela sala. Naquele sítio, homens procuravam outros homens.
E foi então que Margarida, ali sem casaco, mas ainda suspirando fumo, percebeu. Sentiu uma tristeza gélida e instantânea, que é o que se sente perante uma descoberta que lhe pareceu brutal.
Alberto e os seus ombros estreitos traziam Joana até àqueles locais para que ela visse que ele tinha opções, toda a atenção que quisesse.
Por momentos, Margarida quis agarrar o braço de José e contar-lhe a sua descoberta. Depois achou tudo ridículo e decidiu continuar a dançar.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

confissão

É verdade. Sacrifiquei a verdade dos factos em favor da fluência do discurso.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Tarde de sol

- Anda, vamos passear...
E fomos. Seria uma pena não aproveitar aquele sol de Inverno que praticamente nos implorava que o tomássemos como companheiro para depois da refeição. Fomos e até saímos duas estações de metro antes para mais depressa respondermos a esse pedido.
Caminhámos sob essa luz benéfica, falando, falando sempre, que é uma das coisas que fazemos melhor. Fomos até uma varanda que a cidade tem sobre o rio. Tentei encontrar entre a neblina a baía do Seixal.
- Sabes, ali há um passeio ao longo do rio, tudo ajardinado, com uns cafézinhos simpáticos...
Porquê esta obsessão com a informação? Não poderei passar sem lançar um conjunto de referências?
Decidimos continuar, ir mais para cima, até S. Pedro de Alcântara. Aí estávamos à sombra, o vale da avenida a nossos pés. De onde vem esta apetência para os grandes panoramas? O que é certo é que a vista era boa e condizia com a nossa paz. Olhando para esses sucedâneos do vazio, visitávamos as bases, as concertações da nossa amizade. Fazíamos planos.
- Havemos de ir ali, à Graça... Havemos de meter-nos num comboio e ir até...
Deve ser esse o segredo dos grandes panoramas e da afeição que suscitam: pelo espaço que contêm, os olhos encontram lugar para esvaziar as mentes. Para que fique apenas o essencial, mesmo que o essencial seja uma mera certeza, uma confiança partilhada. Entre nós e com a cidade, para que seja nossa aliada. Para que ela, rodeada de sol e de rio, nos conserve.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

depois do almoço

Ainda bem que me ouves e te sinto a ouvir-me. Ainda bem que paraste o carro e me ouves.
É que não ando por aí às cegas, sem fazer a mínima ideia de nada. Não. Preciso apenas que saibas que sou como sou e não estou à procura de uma mudança. Não. Deixo apenas as coisas acontecer. E esse deixar depende do meu arbítrio.
Se por uma noite perdi o controlo, se por uma noite me deixei ir, ainda aí tive uma palavra a dizer. Ainda que por uma noite me tenha deixado surpreender. A questão é que há uma frieza pensante em mim, pelo que fui eu próprio a decidir o que fazer dessa surpresa que me atacou.
Porque não posso apenas rir-me de forma parva e dizer-te que isto até podia ser uma cena de teatro?
Não estou à procura de alguém que me diga quais as decisões correctas, nem sequer de um correctivo para a vulnerabilidade a esta ou aquela surpresa. Não. Se sou como sou e se aceito a beleza da existência em tudo o que ela proporciona. Alguém terá feito a minha carta astrológica e visto que este tipo de volte-faces para mim constituiriam um mistério (claro que um mistério), mas um mistério de certa forma bondoso. E na aceitação dessa evidência, está a explicação de muita coisa. Talvez não te consiga fazer ver a beleza dessa aceitação, tenho verificado ultimamente que falho em fazer os outros renderem-se às evidências do que for - de uma manhã de sol, por exemplo.
Eu sei por que és assim. Porque tomaste para ti essa cruzada contra a turbulência e a instabilidade, os teus grande inimigos. Tanto que até paraste o carro e me ouves. Ainda bem. E até o paraste num sítio bonito com muitas árvores e o dia está tão agradável: é para isso que eu gostaria de te chamar a atenção. Ainda bem que me ouves.