domingo, 9 de janeiro de 2011

Manhã avançada IV

A minha decisão face àquele hálito sonoro e aromatizado seria escolher se agia em função de alguma espécie de orgulho ou honra ou de acordo com alguma forma de egoísmo que podia muito bem ser concretizada a dois. Fosse como fosse, nunca haveria vencedores nem vencidos. E desse ponto de vista, até era perfeito, sobretudo se pensarmos que tudo estava a acontecer devido a uma boca que cheirava a bosque e a tabaco numa sala escura. O problema, como já foi referido, era apenas meu.
O meu único pensamento para o resto da humanidade foi por causa das idealizações. O seu único defeito era não resistirem ao choque com a realidade. Se não fosse isso, garanto, seriam a criação mais perfeita da espécie humana em toda a cronologia da sua existência.
Voltando à realidade, eu tinha aquela boca e tudo o que ela produzia. Não é sequer preciso pegar nos outros traços mais vagos como eram a cara que essa boca tinha, os pêlos da barba grisalha semeados nas faces, a cor das hastes dos óculos, o corpo que essa boca tinha. Não, nada, se a boca era tão rica como um bloco de papel liso e uma caneta que nele desenhasse.
Sair dali foi o melhor que fiz, mesmo que os vagos contornos do dono da boca se tenham tornado mais nítidos. Saindo, encontrei a luz da manhã, que era em tudo preferível àquela escuridão onde pessoas feias dançavam ao som de uma qualquer música digna de alienados.
Havia um rio e edifícios. E um silêncio marítimo que era em tudo muito bonito, lembrando o resto das coisas. Tudo estava a impor um final àquele drama cómico em três actos protagonizado por um par de lábios que cheirava a bosque e a fumo. Olhando agora, daqui, era até incrível o seu poder. Mas depois chegara à sala dos mais-que-usados em saldo e ditara o seu próprio fim. Se bem que até isso fosse incrível... Fica isso, não mais do que isso, o cheiro forte, fortíssimo, a tabaco e a floresta - um cheiro falante - e uma réstia de poder.
Porque depois do sol (felizmente fazia sol), do rio e dos edifícios, foi a campainha dos primeiros eléctricos que passavam. Lembrando as coisas e a sua vitalidade. E senti que, pelo menos naquele momento, já nem queria saber do pratinho da desilusão que os homens gostavam de ir servindo.

1 comentário:

Luísa A. disse...

Gostei. Assim simples, em vez de um adoro ou um fantástico, não porque fujam à verdade (não fogem), mas porque depois deste fim não apetece dizer palavras que exijam aumentar o volume de voz. Quero um calmo mas sentido "gostei" (que na verdade significa muito mais). Esta história pôs os sentimentos a pensar. E olha que não é comum sentimentos pensarem. Mas acho que a parte de nós que se dirige sem a cabeça pactuou com ela em conversarem - neste texto e fora dele.

Usando as palavras de um amigo, achei delicioso como o sair da sala de música má e pessoas feias veio dar à luz da manhã e ao som dos eléctricos e os vagos contornos da boca do hálito. Gostei que haja algum enigma no fim, apesar dele escolher não recear a desilusão sabemos que o azedo dela já lá está. Acho que é certo que ela virá/chegou, principalmente após o contraste (espantosamente descrito) da noite e do dia, dos cheiros e sons a bosque e a música de "alienados" (perfeito), com o rio silencioso e a campainha. Tenho pena que a beleza da rua não possa contagiar o homem e possam assim evitar o momento que por palavras se trouxe. Para mim o melhor desta história, num todo, é mesmo isso. Os sentimentos vêm ligados ao cenário e o cenário aos sentimentos. Mudam juntos.

Não sei mais o que dizer aqui, embora o texto me tenha dito muito mais do que o que estou a expôr.

Acabo com um simples parabéns, pode ser? É dos mais sinceros.