terça-feira, 4 de novembro de 2014

Hotel na areia 14

(Creio que posso já revelar o nome do homem que fizera as reservas, o que tinha os olhos tristes – José, Zé. Tinha um nome tão curto e, no entanto, ocupava o quarto todo.)

Catarina e Catarina

Catarina tornando-se Catarina. Como foi isto acontecer. Catarina tornando-se Catarina e eu já nem sei onde estamos, se em Faro, se em Lisboa, se em alguma cidade que eu imaginei e ninguém construiu.
Eu vi Catarina ao fim da tarde. Catarina que se tornava Catarina.
Claro que o mesmo homem vago e inconstante, omisso e imprevisível. Claro que sim. Talvez ainda pior. De outra maneira, Catarina não se teria tornado Catarina, não tão rápido, ali mesmo, sob os meus olhos incrédulos.
Notei logo, o tom progressivamente alterado da voz, uma ponta de histeria. Catarina tornava-se Catarina e ia mesmo para além dela. Temi por Catarina.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O Recolhimento

Visitação - Senhora D. Luísa...
Luísa - Estão a rezar. Quem reza?
Visitação - As senhoras do Recolhimento.
Luísa - As senhoras?
Visitação - Sim, as senhoras. Senhoras, moças... as pobres que aqui vivem.
Luísa - Senhoras... casadas com fidalgos?
Visitação - Pois. Casadas com fidalgos, viúvas de fidalgos, órfãs de fidalgos.
Luísa - Viúvas... Palavra terrível.
Joana - E porquê falar em viuvez, minha senhora?
Visitação - Viuvez?
Luísa - Oh... É o meu medo. Temo-a, apenas isso.
Joana - Porquê agoirar? De nada serve agoirar.
Luísa - Ele volta logo, ele volta logo.
(pausa)
Joana - E os aposentos da senhora, irmã?
Luísa - A irmã falava das senhoras que rezam. A quem rezam elas?
Visitação - A quem rezam?
Luísa - Por que rezam? Que pedem elas?
Visitação - O que lhes disser a alma.
Luísa - Poderei juntar-me a elas, a essas mulheres de fidalgo? Eu também sou mulher de fidalgo. E quero rezar por ele. Tenho tanto medo.
Visitação - Claro.
Joana - Ele volta em breve, minha senhora, não deve preocupar-se.
Visitação - Volta?
Joana - Volta.
Luísa - Sim, eu sei que volta. Rezarei por isso mesmo.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

um dia feliz.

Não se esqueça de nada. Não se esqueça do percurso do comboio. Eu sei que é difícil, as paisagens sempre se assemelhando umas às outras. Mas se não reparou nos cambiantes de colinas e arvoredos, é porque provavelmente ia distraído observando quem o acompanhava. Demorando o olhar em cada detalhe do rosto, dos braços, das mãos que se seguravam com força e vontade. Não se esqueça disso também.
Não se esqueça da confusão da gare à chegada, nem do rio de gente que levava até ao mar. Não se esqueça.
Não se esqueça de como o sol brilhava com invulgar fulgor nesse dia à beira-mar. Não se esqueça de como a visão repentina do mar causava comoção.
Não se esqueça de como andaram de lá para cá, sem rumo certo ou previsto, as mãos sempre dadas com força e vontade. Não se esqueça sobretudo do molhe, do enorme molhe - a que chamam pier - onde o buliço era tremendo e tremenda era a excitação. Não se esqueça de nada. Do odor do mar, do sabor do peixe frito, do ruído generalizado.
Não se esqueça de como, sempre de mãos que se procuravam com prazer e vontade, subiram e desceram as ruas dessa estância balnear, onde, mais do que para ver, havia coisas para sentir. Não se esqueça do que sentiu. Não se esqueça.
Não se esqueça sobretudo de como se estenderam sobre as pedras que faziam a praia, as ondas rebentando poucos (pouquíssimos) metros abaixo dos pés. Não se esqueça da quietude - da plenitude - desse momento. De como silêncio e murmúrio bastavam naquela praia de pedras ruidosa. Lembre-se de como (coisa singular) não se falou de passado, de medo, de insatisfação, de temor. Não se esqueça da preciosidade que tal momento constituiu. Não se esqueça do que o inspirou. Não se esqueça.
Não se esqueça, por fim, de como chegaram cansados e embriagados de felicidade ao comboio, onde comeram com vontade e, de novo, não terão atentado nos detalhes da paisagem. Não se esqueça do que nesse dia ficou reiterado e consagrado e de que o mais importante estava naquele comboio e não fora dele. Não se esqueça. Não se esqueça.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Gracinha

Terei de escrever sobre Gracinha. Gracinha e os seus caracóis loiros, os seus vestidos brancos e os seus chapéus de palha. Gracinha que descobre enfim que o amor é espesso e complicado. Complicado porque espesso. Gracinha que passava pelos dias com invulgar leveza.
Foi Carlota, a sua amiga, a primeira pessoa a quem confiou os seus anseios. Na mesma tarde em que Gracinha ouvirá depois um cavalo que se aproxima. Gonçalo Bermudes que finalmente chegará. Como parece tudo tão perfeito a Gracinha quando está com Gonçalo. Ao final da tarde, passearão juntos pelo parque da quinta. Ainda que não falem muito nesses instantes repletos de doçura, para Gracinha estará tudo bem. Porque Gonçalo ali está com ela. E aí os seus anseios parecerão tolos e toda a conversação com Carlota poderia ter ficado pelos momentos em que ambas riram e os caracóis loiros de Gracinha foram agitados com o vigor do riso.

Fantasia estival para N. - 5

Ainda estou a ver Flávio Varzim. Alto, os ombros largos, o sorriso fácil e por isso encantador. O bronze impecável. Ainda o vejo, passeando pela praia, com os seus calções de banho. Azuis. Justíssimos.
Todos os adoravam, todos lhe queriam falar. Rapazes e raparigas. Por isso, o facto de ele me querer a mim dava-me particular satisfação.
"Miúda", dizia-me ele. Ainda o ouço chamar-me. "Miúda". Com o sorriso que eu achava ser o mais bonito do mundo. E estendia-me a mão. Estendia-me a mão enquanto nós ficávamos estendidos no areal, horas a fio. "Sou doido por ti, miúda." E eu sorridente, calava-me. Flávio Varzim, o rei da praia, gostava de mim e eu gostava dele. Fechava os olhos, naquelas tardes alaranjadas, quando o sol começava a sua rota descendente, sentindo Flávio ao meu lado. Sentindo e ouvindo. Flávio Varzim adorava falar. E se sobre ele, ainda mais. Daí que não desdenhasse nem a atenção, nem a paixão que rapazes e raparigas daquela praia lhe devotavam, prontos a beber-lhe cada palavra. As raparigas cada vez com um ar mais aparvalhado, os rapazes tentando encontrar uma posição que lhes disfarçasse a erecção. Ou que desesperadamente lhe tentavam tocar quando nadavam ou jogavam à bola.
Mas eu sabia que, em eu aparecendo, Flávio Varzim olharia para mim e tudo nele sorriria, a fremente corte relegada para segundo plano. "Chegaste, miúda..." Despedia-se apressadamente de quem com ele estava, se se chegasse a despedir. Levantava-se de um salto, esticando os ombros largos, e chegava-se a mim.
"Ainda bem que chegaste. Estava à tua espera, miúda."

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Fantasia estival para N. - 4

Flávio Varzim. No tempo em que eu conhecera o presidente da câmara, Flávio Varzim era o rei da praia.

Fantasia estival para N. - 3

Hoje olho para trás e vejo que tudo o que aquela costa tinha de ordenado e composto, encontrava a sua correspondência no domínio do inesperado, do subversivo. Não poderia ser de outra maneira. Aliás, nesse dia do primeiro passeio tive mesmo disso um primeiro vislumbre. Depois de visitar igrejas e ruínas medievais, procurei um café para preencher o restante tempo de espera. Como a rua abafava, o café era fresco - tudo como devia ser. Sentei-me na frescura e fiz o meu pedido.
O rapaz que me serviu era moreno. O cabelo era negríssimo e a pele tinha um tom ligeiramente encardido, onde brilhava o branco da camisa. Percebi, em dado momento, que se encostara ao balcão e me fixava com todo o à vontade. Era magro, adivinhei-lhe o corpo enxuto debaixo da camisa, mas era o olhar fixo que não desanimava. O olhar meio transviado, meio voraz dos que desejam. Um pouco perturbada por aquele olhar negríssimo na frescura daquele café espelhado, virei-me e fixei as minúsculas bolhas que enchiam o meu copo de água gaseificada. Só conseguia pensar numa coisa, em como aquele rapaz estava cheio de sexo. Estava mesmo certa de que se a ele me dirigisse e lhe perguntasse como se sentia, ele responderia "estou cheio, repleto de sexo". Sorri ligeiramente com esse pensamento e como o coronel me ligava entretanto, saí dali com pressa, aquele olhar despudorado perseguindo-me.
O coronel era finalmente meu e fomos passear a pé pela marginal, que serpenteava ao longo da costa. O pôr do sol pintava o horizonte de rosa e laranja. Como o dia começava a findar, uma brisa fresca se levantava e o coronel passou-me o braço em redor dos ombros. Falávamos. Falei do meu dia, do que vira. O coronel trouxera-me àquela que fora em tempos a sua costa e começou a discorrer sobre ela. Episódios soltos. A voz do coronel era bonita e reconfortante, enriquecendo as histórias com o timbre afável. Os momentos de partilha não eram habituais no coronel, pelo que, naquele fim de tarde, eu nos sentia mais próximos. A presença do coronel fazia-me bem. Sentir o seu braço à volta dos ombros, ouvir a voz que saía de uma boca tão perto da minha, ia ao meu interior puxar qualquer coisa de comovente e de comovido. Eu não sabia muita coisa sobre o coronel e aquela costa (três anos depois eu ainda não conhecia a casa). Saber mais alguma coisa, enquanto o mar que vinha roçar os molhes murmurava e a brisa soprava com doçura, fazia-me sentir menos pequena face a serviços completos de loiça italiana, fossem eles quantos fossem. Um pouco mais segura, mais corajosa talvez.

As recordações, como são sempre, acabaram por ser interrompidas por outra lembrança do coronel, algo que ele entretanto se esquecera de me comunicar. Falou de uma festa, referiu o presidente da câmara municipal. Como caminhávamos lado a lado, o coronel não viu o ligeiro sorriso que esbocei ao ser mencionado o autarca da vila onde rapazes cheios de sexo serviam à mesa em cafés.
Pois o coronel não sabia que eu conhecia aquele sítio. Eu já ali tinha estado antes.
O coronel não sabia que, em tempos, eu conhecera o actual presidente da câmara.

sábado, 17 de maio de 2014

Fantasia estival para N. - 2

Já estávamos casados há três anos, mas eu nunca ali tinha estado. É possível que o coronel associasse àquela casa um monte de memórias difíceis de arquivar. Não sei. Mas uns negócios na vila vizinha (por essa altura ele tinha um alto cargo na administração de uma construtora) tinham servido de pretexto para a nossa vinda. E assim que decidira ir, disse-me que queria que eu o acompanhasse. E como o coronel era meu marido e eu gostava dele, acedera.
No terraço em que tomava o pequeno-almoço sozinha, limitava-me a observar o que me rodeava. Havia árvores e relvados, outras casas não muito distantes. Ao longe, ouvia-se o mar, naquela manhã nitidamente revolto. Eu sozinha e o mar ao longe. A calma sabia-me bem. Sabia-me bem estar ali, bebendo café de chávenas de loiça italiana, enquanto um largo guarda-sol me protegia dos raios solares. Estava sozinha porque o coronel se levantara cedo para ir até à vila. Era o que vinha acontecendo todas as manhãs.
Sozinha, lavei a loiça do pequeno-almoço e saí de casa. Explorei as redondezas. Havia outras ruas com outras casas, todas parecidas com a do coronel. Pertenciam todas à mesma época, aos últimos anos daquela costa como refúgio isolado dos ricos. Acho que nalgumas delas, cheguei a ver estampados semelhantes nas cortinas das janelas e, julgo que noutras, era possível que famílias tomassem refeições servidas em loiça italiana. E eu ali.
À tarde, passada a hora de maior calor, desci até à praia. Era tudo muito bonito e muito calmo. Ao olhar o mar, sentia um grande carinho pelo coronel, que até ali me trouxera, decerto sabendo o quanto o sítio me ia agradar. O coronel era assim, genuíno e devotado, tanto quanto o era o seu amor e isso deixava-me profundamente feliz. Uma felicidade que todo o cenário vinha ajudar a compor.
Ao regressar à casa pequena mas espaçosa, o coronel já me esperava para jantar. Sorrimos ao ver-nos.

No dia seguinte, disse-lhe que o queria acompanhar à vila. Ele disse que sim, mas que não poderia ficar comigo. Eu respondi-lhe que não fazia mal, que aproveitava para passear e ficar a conhecer a localidade. Fomos. Vesti-me um pouco melhor, demorei um pouco mais a arranjar-me. Não sei ao certo porquê.
Chegados à vila, separámo-nos. O coronel foi aos seus negócios, eu fui ao meu passeio, começando por aquilo a que se convencionou chamar centro histórico. A vila vivera ressabiada durante o setembrismo, mas não hesitara depois em arvorar como figura primeira da terra o grande (e renegado) tribuno de Setembro durante o consulado cabralista. Era um facto que constava de todos os manuais de história, mas quanto ao qual a papelada que me deram no posto de turismo era omissa. E, de facto, lá estava a estátua desse homem, a quem praticamente tinham reescrito a história ainda em vida, polida e erecta no centro da principal praça do burgo, que já fora da Constituição, da Regeneração e da República e à qual, por esses dias, um grupo de académicos e empresários tentava rebaptizar com a designação setecentista de Santa Eulália.
Isso em nada interferia com o meu passeio, que com muita calma decorria.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Fantasia estival para N.

Olhava-me no espelho e pensava "esta não sou eu". Ali naquela casa, não era eu. Naquela casa, sentia que tinha entrado num outro mundo, misterioso, incerto. Não sabia ao certo porquê. Seria pela decoração? A casa fora decorada pela primeira mulher do meu marido, via-o no estampado das cortinas e na loiça italiana.
O meu marido, o coronel, trouxera-me com ele até àquela casa. Uma casa não muito grande, mas espaçosa, próxima do mar.
Era a primeira vez que eu via aquela casa. O meu marido, o coronel, ia tratar de negócios. Depois da carreira no exército, o meu marido, o coronel, tinha entrado nos negócios. Mas dos grandes. Tão grandes que havia dinheiro para tudo. O coronel tinha tanto dinheiro que eu não precisava de trabalhar.
Por isso, ali estava eu, naquela manhã de sol, depois de ter dormido até mais tarde, a tomar o pequeno-almoço no terraço, em loiça italiana que eu não tinha escolhido.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Pedro e Carolina - interlúdio

Não consigo deixar de encontrar alguma beleza delicada nesta história, nem que seja pela ingenuidade. Os diálogos são, na grande maioria, elementares, coisas que só aos dezassete anos alguém acharia possível dizer. Mas há um sentido de drama, de estrutura. A história de Tomás e Leonor é aquela que se destaca, pela sua qualidade ligeiramente superior. É também ela que motiva um digno fechamento dos três actos. No primeiro, a complicação da situação com Tomás a escrever a Leonor ao mesmo tempo que recebe uma carta de Maria Teresa. No segundo, a fuga de Tomás e Leonor e o que tem Miguel a dizer acerca disso. A cena em que Leonor procura Tomás no baile e depois aquela em que se declaram um ao outro têm o seu brilho. É possível fazer algo deles?
A história de Pedro e Carolina torna-se muito secundária, limitada a uma sucessão de cenas espaçadas em que ele se tenta dela aproximar e ela, com toda a ligeireza, o vai afastando e aproximando. O encanto de Carolina também estava aí e é claro que ela sabia fazer uso das suas habilidades. Ela sabia até onde podia ir. Lia os outros muito bem, especialmente o efeito que neles tinha e agia em conformidade. Enfim, nem sempre. Sabe-se que o fim da relação com o outro Pedro foi um golpe duro. Não totalmente inesperado, mas ainda assim duro. A sua dor foi genuína, tal como também andava já encantada por um certo médico do Chiado chamado Pedro. Não se podem negar os sentimentos de Carolina. Há é que saber conjugá-los com um ligeiro calculismo, um distanciamento nem sempre voluntário, que lhe surgira algures ao crescer na casa da magnólia. Teria sido no ar da casa? Na educação recebida? Pois Tomás partilhava dessas características. O ímpeto e o gesto dramático viviam paredes meias com um atento olhar sobre as situações. Só isso explica a fuga para Paris, sabendo o que isso causaria.

Pedro e Carolina 7

Pedro e Carolina falavam de tudo. Quando decidiram ficar juntos, não se largavam. Foi já nos braços de Pedro que Carolina leu a carta que a sua prima Rita lhe remetera do Porto, dando-lhe conta da sua instalação definitiva na cidade, bem como da confirmação do casamento com um tal João Edgar, das relações das primas que visitara um mês ou dois antes. Como tinham Pedro e Carolina galhofado em torno dessa missiva. Como galhofavam então de tudo. Acompanhado com um interesse genuíno e partilhado a viagem de Tomás por Itália, também ela relatada por cartas (estas mais curtas que a de Rita) que iam chegando à casa com magnólia no jardim. Dos dois se fizera um.

A terceira dirige-se à segunda

Deixe estar, é melhor que não me conte nada. Com tanta complicação, prefiro não saber.
Eu já decidi que comigo vai ser diferente. Já decidi o que fazer e começarei por aí mesmo. Não vou saber, não vou querer saber de nada.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

L'Arlésienne

L'Arlésienne é uma peça de teatro em três actos de Alphonse Daudet, extraída de uma novela das suas Lettres de mon moulin.
A personagem do título nunca aparece em cena e, no entanto, todos falam dela e é em função dela que o enredo se desenrola. A ela se devem a obsessão e a desgraça de Frédéri, bem como a incapacidade de Rose e da jovem Vivette em se aproximarem dele. Notícias do que essa tal personagem do título - a rapariga de Arles - diz e faz chegam-nos pela boca de outros: de Frédéri, de Marc e do temível Mitifio.
A expressão "l'arlésienne" entrou na linguagem corrente para designar algo ou alguém de quem todos falam, mas que nunca aparece.
A peça foi adaptada à ópera pelo compositor Francesco Cilèa. O libreto, em italiano, segue de perto a peça de Daudet.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O regresso de Lola e Laranjinha

Nos últimos tempos, temos andado muito queer. No fim de Setembro, o Laranjinha quis passar os fins de tarde no São Jorge a consumir cinema LGBT no Queer Lisboa. Foi giríssimo, era só gente linda e fabulosa, espero que tenham ido. Há por aí umas certas homofóbicas – eu bem sei quem são – que iam religiosamente babar-se com as fotografias postas no Facebook. Pois podiam tê-lo feito ao vivo, meninas. Juro, às vezes até me doía ver tanto homem bonito e perfumado junto. O Laranjinha andava delirante, claro.
Adiante.
Inspirado por esses dias de activismo, o Laranjinha passou os dias seguintes a fazer-me ver uma série de outros filmes do género. Para não falar em maratonas de episódios de
Glee escolhidos por ele e que fazia questão de acompanhar com demoradas reflexões sobre o lugar dos gays na televisão.
Daí a irmos a uma discoteca de transformismo, foi um passo. O Laranjinha gosta imenso de ir a uma no Príncipe Real e, eu com aqueles filmes, andava cheia de respeito por essas senhoras. Conheço o Laranjinha há seis anos e, mesmo assim, consegue sempre surpreender-me com algum lugar novo. Pelo menos ali não deveria correr o risco de encontrar o meu tio Abel.

São Quintino - Rita

Rita afastou-se da janela aberta e sentou-se na cama. O quarto estava relativamente fresco naquele início de tarde e Rita reclinou-se. Da rua, praticamente nenhum ruído. Ouvia-se, de quando em quando, um latido longínquo, uma voz.
Estava certa, devia ser aquilo, mas não... Sentia-se mole. O que a fazia tremer, o que a deixava insegura... Sentia-se entediada. Ouvia a mãe cantar em baixo.
Queria fechar os olhos só para não ter de os fixar febrilmente em todos os pontos do quarto. Sem sucesso. Com a mente, desenhava contornos, concentrou-se depois nos detalhes, tentando ser precisa em todos eles. E a voz de alguém que passava na rua calma. A mãe que cantava em baixo. E Cristina, onde estava? Sim, era assim o sorriso. E a voz... Temeu não conseguir lembrar-se. E as mãos...
Rita estendida na cama e a cabeça tão confusa. Uma sensação estranha na barriga, uma vontade de gritar. De correr até... Imaginava como seria aproximar-se e dizer qualquer coisa, sem saber que coisa dizer. E as suas mãos que tremeriam agarrando-se.
O campanário dolente deu as três, despertando Rita do seu torpor. Despertou-a, não a fez esquecer-se de José. José, o povoador de pensamentos.
Rita admitiu para si mesma que estava apaixonada.

Pedro e Carolina 6

- O doutor sabe o que é o amor?
- Sim, Carolina, infelizmente sei o que é o amor...
- É perigoso, temos de ter cuidado com ele.
- E até onde irão esses cuidados?
Este diálogo tinha lugar no jardim de Inverno da casa de Carolina, quando esta se enclausurou terminado o namoro com o outro Pedro. Entretanto, Tomás e Leonor tinham já desastrosamente fugido para Paris e regressado.
- Não me faça responder a essa pergunta já, estou debilitada.

quinta-feira, 13 de março de 2014

A segunda dirige-se à primeira 2

Não consigo evitar um ligeiro esgar de desprezo quando recapitulo essa história que insiste em contar e recontar, juntando-lhe sempre novos detalhes. Eu sei que a diligência que coloca nesse relato e em completá-lo a cada nova lembrança recuperada é uma tentativa desesperada de me convencer da veracidade do sentimento que os uniu - a si e a ele. Desesperada. Poderia ser outra coisa? Quando essa história já não existe e dela nada resta fora as lembranças - essas dolorosas companheiras - e um rasto de podridão?
Eu própria recapitulo essa história, de tanto a ouvir. Acho que há algo de perverso nessa insistência da sua parte em falar-me do que se passou, de tudo o que aconteceu. Eu sei que me quer desanimar. Eu sei que na sua cegueira, você não se conforma e tem pavor e raiva da felicidade alheia.
Uma questão que se coloca - talvez a mais importante e aquela que mais interrogações me desperta - é a de um certo temor calado que percorreu a vossa história desde o início. Por favor, não repita, não articule nunca mais esse temor. Não me volte a dizer em que consistia. Não me conte novamente como lidava você com ele. Não. Por favor. Cale-se. Não é preciso. Eu sei. Eu sei. Eu sei. Eu já sei.
É que a senhora não calcula a tristeza que apenas a ideia de tal coisa me traz. É um misto de pena, compaixão, mas também - não se surpreenda, já lho disse - de muita incredulidade e algum desprezo. Não faz sentido. Não faz. E só me leva a continuar a chamar-lhe senhora. Não quero que nada nos aproxime, que nos liguemos. Por isso trato-a por senhora. Tratarmo-nos por tu seria tornar-nos praticamente irmãs, companheiras de alguma coisa e não o somos. Só estas conversas que temos já são uma violação grave da ordem natural das coisas.
Gosto de tratar as pessoas por tu, gosto que me tratem assim, é verdade. Mas não lhe posso permitir tal coisa, quando o que você faz é querer que eu me sente consigo para que me possa contar a sua linda e bizarra história de amor.
Não. Não chore. Por favor.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A segunda dirige-se à primeira.

Vim aqui dizer-lhe que não. Não quero fazer parte da sua história. Ela dá-me dó e, consequentemente, algum asco. Acho-a - a si - um pouco fraca, mas não tanto como a acho estúpida.
Não há outra forma de dizer isto.

idas ao âmago.

Punha-me a pensar e pensava como é do quotidiano que me alimento. Achava que bastava as pessoas serem cúmplices e confiarem uma na outra. O resto viria por si.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Pedro e Carolina 5

Um detalhe pouco lembrado da vida de Pedro é a relação que manteve com Luisinha Zanetti no início de 1924. Pedro rendeu-se-lhe com o mesmo deslumbramento que Carolina viria a suscitar nele quase dois anos depois, se calhar até mais. Ele era então mais novo, mais inocente. E melhor pessoa, estou em crer.
Não se sabe muito sobre Pedro e Luisinha, talvez porque o facto de ela ter acabado por cometer suicídio, ao despertar as mais vivas curiosidades e especulações, inibiu a maioria de fazer perguntas de forma mais aberta.
Luisinha era encantadora. Era assim que quase todos a lembravam. Mas uma parte desse encanto estava nos olhos permanentemente tristes, que só de vez em quando brilhavam acompanhando um sorriso. Para Pedro, ela foi a coisa desconcertante que lhe passou pela vida. Porque sentia. Por sentir, o jovem Pedro Vasques não podia limitar-se a dizer muito clinicamente que ela era depressiva, um pouco histérica, talvez louca, e que ele em nada era responsável. Não. Porque sentia, Pedro lia tudo à luz dos sentimentos e os estados inconstantes de Luisinha eram para ele uma partida de paciências a ser resolvida e nos quais ele era parte implicada, pelo caminho causando nele grandes estragos. Porque havia alturas em que ela simplesmente desaparecia, dizia que não o queria ver mais. E, noutras, agarrada a ele, falava de medos em frases bastante bem articuladas, mas de sentido frequentemente imperscrutável. Pedro amava e seguia devotadamente o trajecto de cada lágrima ou a sonoridade de cada gargalhada. E tentava ajudá-la, sem saber como. Fazia-se e desfazia-se, tentando perceber se ela estava magoada com algo que ele dissera ou se simplesmente não lhe apetecia sair de casa.
Antes de tomar o destino nas próprias mãos, Luisinha usou uma delas para escrever um pequeno bilhete a Pedro, isentando o jovem de qualquer responsabilidade no seu fim. Era uma carta até bastante lúcida, própria de quem percebeu a dor insuportável de viver de olhos marejados.
É demasiado doloroso falar desse momento e de falar de Pedro nele. Mas aconteceu. E toda a gente sabia e, entrando num restaurante ou numa festa, viam nele o sobrevivente ou o cúmplice de um insucesso que muito comoveu o Chiado e os salões lisboetas daqueles dias.
Carolina sabia da história, como toda a gente. Aliás, numa das primeiras conversas que teve com a sua prima Rita a propósito de Pedro, a filha do meio dos Zanetti fora logo mencionada, mancha e sombra no percurso do médico. Mas Carolina gostava dele e isso bastava-lhe. Tanto que ela estava viva e a outra morta. E por isso nunca lhe perguntou.
Porém, foi algo que sempre a intrigou. Tinha, mais que curiosidade, verdadeiro interesse. Mas o que começou por ser respeito pela dor e pelo silêncio, tornou-se num aparente desprezo deliberado por uma história. A resposta a esta questão, ao porquê de Carolina nunca ter interrogado o médico do Chiado acerca de Luisinha Zanetti, não é simples. Não pode ser simples. Mas é um facto que ela nunca puxou desse assunto. Durante o período em que ele lhe fazia a corte, teria sido assunto por demais indecoroso. Depois, quando Pedro se entregava com facilidade a devaneios íntimos e deixava escapar alguma alusão a como não gostava de alguém assim desde Luisinha ou como Carolina era para ele algo que a outra não fora, a irmã de Tomás ficava muito séria e calada, sem saber o que dizer. Talvez temesse essa figura, que ela lembrava vagamente de ter visto num baile, e do lugar que tivera na vida, nos sentimentos de Pedro.
Pedro chegara-lhe às mãos bem partidinho, Carolina sabia-o. Mas talvez o amor que lhe tinha a deixasse vagamente envergonhada com a ideia de poder amar e estar casada com alguém que precisava de ser curado. E isso complicava a sua relação com a memória da outra. E sem saber o que fazer, ainda que adivinhando uma mágoa, uma dor no marido, Carolina acabou por nunca dela se aproximar.
Devia ter falado, perguntado. Por que nunca o fizera? Estes pensamentos tinha Carolina ao fim de vários de casamento, moravam então já na Rua de São Ciro (durante os primeiros quinze anos de casados, tinham vivido perto do Largo do Andaluz) e Pedro seria também já deputado à Assembleia Nacional.
Carolina pensava nisso à noite, com as grandes janelas da sala de jantar abertas para a noite estival. Carolina encostava-se ao parapeito e olhava a escuridão das traseiras, ouvindo o rumor da brisa fresca nos vultos da árvores, ao de leve iluminadas por algumas janelas àquela hora ainda amarelas. Sentindo essa brisa que vinha aliviar a atmosfera depois dos dias quentes, Carolina acendia o cigarro, um hábito que ganhara, não em nova quando andavam todos a fazê-lo, mas bastante mais tarde. Pensava no marido e em Luisinha. Imaginava o que teria sido terem falado sobre eles, ela ter-se disposto a fazê-lo. Teriam as coisas - ou alguma coisa - sido diferentes? Porque temera tanto ela essa pessoa enterrada desde Maio de 1924 nos Prazeres? Ela que estava ali, em plena década de 1940, numa sala de jantar de mobília pesada e na lista de tudo o que era recepção de embaixada ou inauguração de obra pública.
E se falasse? Sozinha na sala de jantar que, pelas janelas abertas, recebia o ar fresco da noite, Carolina pensava: e se falasse? Se lhe dissesse. Pedro, fala-me da Luisinha. Se lhe perguntasse. Pedro, por que se matou a Luisinha? Pedro, tu gostavas dela? Tu sofreste, Pedro?
E se. E se. Ainda estava a tempo. Eles estavam ali os dois, vivos e juntos.
Mas não o fez. Fosse pela passagem do tempo e pelo que ela trouxera, fosse para não lhe dar essa satisfação, fosse por algum despeito ainda existente, fosse pelo medo do que poderia ouvir, não o fez.
O cigarro terminado, esmagou-o no cinzeiro. Lançou ainda um olhar aos vultos das árvores, apenas levemente distintos por se agitarem ao sabor da brisa, e fechou as janelas da sala de jantar. E saindo, apagou a luz.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Pedro e Carolina 4

Tomás e Carolina foram felizes ao crescer na casa com a enorme magnólia no jardim das traseiras. A infância e a juventude passaram-lhes sem grande comoção (tirando a própria das idades, dos amores de adolescente, por exemplo). Não houve morte, acidente trágico ou qualquer outro acontecimento traumático que tenha vindo perturbar o ar sereno e perfumado daqueles salões e daqueles quartos. Passou por lá, sim, uma preceptora alemã, a quem Carolina foi buscar a fluência na língua e que em 1915 abandonou o país, não sem atrair alguns olhares sobre a família.
Dessa infância aparentemente plácida, Carolina e Tomás emergiram bonitos e delicados, os dois partilhando uma mesma forma de olhar as coisas e as pessoas. Expressões de indiferença, traídas de vez em quando por um súbito brilho no olhar ou uma gargalhada irreprimível, com isso causando basta irritação.
Com quarenta anos, e apesar de Pedro, Carolina teria ainda esses risos, a gargalhada fina. Aliás, Pedro motivaria parte deles. Olhava-a de esguelha, irritado, nem sempre sabendo por que se rira a mulher. Sem a confrontar, no entanto. Nunca foi com ela violento, nunca lhe levantou a voz. E talvez aí tenha residido grande parte da sua brutalidade enquanto marido. Estou em crer que, de alguma forma, ele sempre a temeu e a partir de determinado momento deixou de saber lidar com esse temor. A verdade é que ele a amara, amou-a quase desde o primeiro momento, amou-a definitivamente quando ela finalmente acedeu a recebê-lo no jardim de Inverno e ele viu-lhe nos olhos o choro recente. Para ele, Carolina constituiu sempre um mistério. Mesmo quando ela lhe disse "Doutor, não sei o que é a perfeição, mas certamente nunca estarei mais perto dela do que consigo", que era - diga-se - a maior declaração de amor que Carolina podia fazer. Esse mistério que nela via, sempre o impressionou. Volta e meia surpreendia-se, seria possível que aquela mulher delicada que ele conhecera numa mascarada no Campo Grande gostasse dele, o quisesse, tivesse aceitado tornar-se sua mulher? E com essa persistente questão, o medo chegava célere. Um medo que ele não se atrevia a articular, nem para si mesmo. A vida profissional e social começou a correr-lhe bem e, mais tarde, veio a dar a decisiva entrada nos círculos políticos, o que lhe insuflou grandemente o ego. E assim foi arranjando um refúgio contra os receios que a existência e a presença de Carolina tinham acabado por causar, sem que ela o percebesse logo.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Pedro e Carolina 3

A noite do baile de máscaras. Como parecia longínqua a Carolina alguns anos depois. Essa noite em que a sua vida mudara, por obra da aparição de Pedro, então um jovem e atrapalhado médico. Tudo parecendo tão perfeito, ela cheia de espírito e ele vítima pouco sapiente do encantamento.
Poderia dizer-se dela que seria um pouco inconstante. Alguns consideravam isso um mal do tempo. Contudo, em boa verdade, sei apenas de uma outra paixão precedente que ocupou o coração de Carolina - Pedro, um outro Pedro.
E todos no círculo viram a substituição de um Pedro por outro com muito bons olhos. Isto porque o primeiro dos Pedros não era, realmente, merecedor do afecto de Carolina. Também essa história merecerá o seu lugar, mas não aqui, não quando a entrada de um Pedro conseguiu apagar o outro de forma tão bonita, tão romântica. Não logo, é certo. Pedro bem foi dar com Carolina chorosa naquela espécie de jardim de Inverno que havia no primeiro andar da casa de seus pais, local onde ela o recebia e onde, em frente às vidraças dando para a magnólia florida do jardim, ele a cortejou e lhe soube ganhar o coração.
Carolina teria então pouco mais do que vinte anos. Durante a guerra, secundara activamente a mãe em várias obras de beneficência a favor de mutilados, órfãos e viúvas. Também por essa altura, adolescente, fizera parte da legião de admiradoras de Sidónio Pais e respectivo bigodinho.
Já não era essa rapariguinha que agora saltitava entre a Versailles e a Bénard. Voltam a mim as mesmas inquietações quando penso nesses pequenos-almoços tardios na Versailles com as amigas. As gargalhadas de Carolina. Carolina que sorria, orgulhosa, quando as amigas abriam as revistas com críticas muito elogiosas às peças do irmão. Carolina dando ares de muito avisada, mas perdendo o pé ao apaixonar-se. Não surpreende que Pedro tenha ficado fascinado naquela noite de festa em casa da viscondessa de Lima Campos.
Não foi só Pedro que mudou, Carolina também terá mudado. Mas por que não poderiam ter permanecido felizes? Sinto alguma pena por isso. Casados em 1926, tudo parecia promissor. Alguns anos depois, no entanto, tinham-se afastado. Terá o facto de não terem tido filhos contribuído por isso? Pedro foi-se tornando seco e, sobretudo, foi ganhando um amor por si próprio que irreversivelmente o afastou da candura que o caracterizava quando era um médico recém-formado com consultório acabado de montar no Chiado. Foi ganhando nome e dinheiro, tinha aquela lindíssima mulher.
Essa, admiro-a pela sensatez com que apreendeu a degradação do casamento e como, com essa constatação que outras aterraria de morte, soube o que fazer. Permanece a questão do divórcio, mas a dada altura também esse se tornou demasiado complicado de concretizar.

E o que foi feito de Tomás? De Rita, de Miguel? Qual o seu propósito nisto tudo? Todos vivendo desafogadamente na Lisboa do pós-guerra, parece-me que as suas existências se limitavam às suas paixões e desamores. Viviam focados nisso. Não consta que em algum deles vicejassem preocupações de ordem política ou social. Chega a ser confrangedor. Sabe-se que Rita com alegria casara e se mudara para o Porto, que ela achava ser um lugar melhor para ter crianças.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Vivetta procura Federico e procura-se a si mesma

- Federico, lembras-te?
- Não.
- Lembras-te? Sim.

Há muito coisa aqui que me inquieta. Sei que a minha coexistência com tanto lugar, tanta pessoa, tanta história não é pacífica. Inquieta-me sobretudo não saber se alguma vez o chegará a ser. É verdade: coexisto, mas coexisto mal. Defeito meu, estou em crer.
Refugio-me por isso na tranquilidade do que é palpável. Falam-me de sentimentos e penso no valor, na qualidade desses sentimentos. Consigo tocar num sentimento? Será prova bastante um frémito num corpo que sente? Poderá um corpo que freme tranquilizar-me?
Dizia eu que procuro o palpável nesse meu combate por uma existência pacífica, pelo menos não tão atreita a questionamentos.
(A propósito, quero recuperar Diocleciano. Recupero-o porque também ele se apaixonou. Recupero-o porque preciso dele. Preciso que não morra no fim de um dia de praia. Preciso que me responda a umas quantas questões. Que me ajude.
Se amou por amar e se bastava saber-se correspondido para que não se questionasse mais. Se ao saber-se amado, assumia esse lugar com a destreza de um herdeiro legítimo e a voracidade de um usurpador que nada teme. Para ele um corpo fremente era só mais um elemento no curso natural do que era para ele o amor.
Por isso, preciso que ele fale comigo. Que não morra e que fale comigo.)
Nada mais palpável do que uma tarde de Inverno soalheira. O vento fresco. O sol que timidamente aquece o que alcança. Os pedaços de relva tão verde. Chovera durante a noite e a tarde era de um sol - a relva não poderia ser mais verde. O cheiro dessa relva. Tudo tão real e verdadeiro. Tão concreto e, por conseguinte, confortável.
Perto de mim, caminha um homem. E também não muito longe, há um cão que corre. (Curioso como nunca em fantasia alguma minha houve um cão, um gato, um estúpido canário que fosse - no entanto, ele ali está.) O homem está ali, à distância de um braço, concretíssimo. Sinto até o seu perfume, forte e concreto. Se fechar os olhos, ouço o rumor do vento nos ramos despidos das árvores, o ruído regular de algum automóvel que passe, o cão que corre.
(Diocleciano, fala comigo, vem em meu auxílio.) Sei que tento através dessas impressões consagrar algo. Um lugar, uma pessoa, uma história. Estes.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Catarina 3

Catarina olhando a ria, não sabe o que pensar, não sabe o que quer.
Saber talvez até saiba (que aquele dia que ela sabe que vai chegar, chegue o quanto antes), mas por enquanto ainda não lhe é permitido (não é capaz) de formular tal desejo, muito menos de forma consciente e articulada.
Catarina olhando a ria, àquela hora o sol poente desfazendo o céu em mil tonalidades. A brisa do fim da tarde que se levanta. E Catarina sem saber. (Quantos fins de tarde não tinham eles partilhado por ali? Quantas vezes palavras bonitas não lhe tinham chegado aos ouvidos ali perto, talvez ali mesmo, à beira-ria?)
Catarina não se perdoa ter imaginado. Catarina não se perdoa ter-se rendido.
Tanto tempo, tantas horas, que Catarina dedicou a pensar nele, a projectar, a imaginar. Tantas. Primeiro, tomara sozinha uma decisão: iria com ele. As coisas não se poderiam passar de outra forma. Ele pediria que ela fosse. Ou diria que ficava. Apenas uma dessas hipóteses seria concretizável. Por isso, Catarina pensava, projectava, imaginava. Se tantos fins de tarde eles passavam à beira-ria, se tanta brisa vespertina lhe sacudira os cabelos, ameaçando os penteados.
Tola.
Antes que lhe pudesse dizer o que fosse, o mandato do pai dele como governador civil terminara e ele apenas dissera "Desculpa, tenho de ir.", acrescentando mais qualquer coisa sobre como gostava tanto dela. Assim. E metera-se num comboio e nunca mais dele Catarina soube algo.
Olhando a ria, àquela hora insuportavelmente mal-cheirosa, Catarina tem náuseas e vontade de vomitar.