sábado, 17 de maio de 2014

Fantasia estival para N. - 2

Já estávamos casados há três anos, mas eu nunca ali tinha estado. É possível que o coronel associasse àquela casa um monte de memórias difíceis de arquivar. Não sei. Mas uns negócios na vila vizinha (por essa altura ele tinha um alto cargo na administração de uma construtora) tinham servido de pretexto para a nossa vinda. E assim que decidira ir, disse-me que queria que eu o acompanhasse. E como o coronel era meu marido e eu gostava dele, acedera.
No terraço em que tomava o pequeno-almoço sozinha, limitava-me a observar o que me rodeava. Havia árvores e relvados, outras casas não muito distantes. Ao longe, ouvia-se o mar, naquela manhã nitidamente revolto. Eu sozinha e o mar ao longe. A calma sabia-me bem. Sabia-me bem estar ali, bebendo café de chávenas de loiça italiana, enquanto um largo guarda-sol me protegia dos raios solares. Estava sozinha porque o coronel se levantara cedo para ir até à vila. Era o que vinha acontecendo todas as manhãs.
Sozinha, lavei a loiça do pequeno-almoço e saí de casa. Explorei as redondezas. Havia outras ruas com outras casas, todas parecidas com a do coronel. Pertenciam todas à mesma época, aos últimos anos daquela costa como refúgio isolado dos ricos. Acho que nalgumas delas, cheguei a ver estampados semelhantes nas cortinas das janelas e, julgo que noutras, era possível que famílias tomassem refeições servidas em loiça italiana. E eu ali.
À tarde, passada a hora de maior calor, desci até à praia. Era tudo muito bonito e muito calmo. Ao olhar o mar, sentia um grande carinho pelo coronel, que até ali me trouxera, decerto sabendo o quanto o sítio me ia agradar. O coronel era assim, genuíno e devotado, tanto quanto o era o seu amor e isso deixava-me profundamente feliz. Uma felicidade que todo o cenário vinha ajudar a compor.
Ao regressar à casa pequena mas espaçosa, o coronel já me esperava para jantar. Sorrimos ao ver-nos.

No dia seguinte, disse-lhe que o queria acompanhar à vila. Ele disse que sim, mas que não poderia ficar comigo. Eu respondi-lhe que não fazia mal, que aproveitava para passear e ficar a conhecer a localidade. Fomos. Vesti-me um pouco melhor, demorei um pouco mais a arranjar-me. Não sei ao certo porquê.
Chegados à vila, separámo-nos. O coronel foi aos seus negócios, eu fui ao meu passeio, começando por aquilo a que se convencionou chamar centro histórico. A vila vivera ressabiada durante o setembrismo, mas não hesitara depois em arvorar como figura primeira da terra o grande (e renegado) tribuno de Setembro durante o consulado cabralista. Era um facto que constava de todos os manuais de história, mas quanto ao qual a papelada que me deram no posto de turismo era omissa. E, de facto, lá estava a estátua desse homem, a quem praticamente tinham reescrito a história ainda em vida, polida e erecta no centro da principal praça do burgo, que já fora da Constituição, da Regeneração e da República e à qual, por esses dias, um grupo de académicos e empresários tentava rebaptizar com a designação setecentista de Santa Eulália.
Isso em nada interferia com o meu passeio, que com muita calma decorria.

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