quarta-feira, 21 de maio de 2014

Fantasia estival para N. - 3

Hoje olho para trás e vejo que tudo o que aquela costa tinha de ordenado e composto, encontrava a sua correspondência no domínio do inesperado, do subversivo. Não poderia ser de outra maneira. Aliás, nesse dia do primeiro passeio tive mesmo disso um primeiro vislumbre. Depois de visitar igrejas e ruínas medievais, procurei um café para preencher o restante tempo de espera. Como a rua abafava, o café era fresco - tudo como devia ser. Sentei-me na frescura e fiz o meu pedido.
O rapaz que me serviu era moreno. O cabelo era negríssimo e a pele tinha um tom ligeiramente encardido, onde brilhava o branco da camisa. Percebi, em dado momento, que se encostara ao balcão e me fixava com todo o à vontade. Era magro, adivinhei-lhe o corpo enxuto debaixo da camisa, mas era o olhar fixo que não desanimava. O olhar meio transviado, meio voraz dos que desejam. Um pouco perturbada por aquele olhar negríssimo na frescura daquele café espelhado, virei-me e fixei as minúsculas bolhas que enchiam o meu copo de água gaseificada. Só conseguia pensar numa coisa, em como aquele rapaz estava cheio de sexo. Estava mesmo certa de que se a ele me dirigisse e lhe perguntasse como se sentia, ele responderia "estou cheio, repleto de sexo". Sorri ligeiramente com esse pensamento e como o coronel me ligava entretanto, saí dali com pressa, aquele olhar despudorado perseguindo-me.
O coronel era finalmente meu e fomos passear a pé pela marginal, que serpenteava ao longo da costa. O pôr do sol pintava o horizonte de rosa e laranja. Como o dia começava a findar, uma brisa fresca se levantava e o coronel passou-me o braço em redor dos ombros. Falávamos. Falei do meu dia, do que vira. O coronel trouxera-me àquela que fora em tempos a sua costa e começou a discorrer sobre ela. Episódios soltos. A voz do coronel era bonita e reconfortante, enriquecendo as histórias com o timbre afável. Os momentos de partilha não eram habituais no coronel, pelo que, naquele fim de tarde, eu nos sentia mais próximos. A presença do coronel fazia-me bem. Sentir o seu braço à volta dos ombros, ouvir a voz que saía de uma boca tão perto da minha, ia ao meu interior puxar qualquer coisa de comovente e de comovido. Eu não sabia muita coisa sobre o coronel e aquela costa (três anos depois eu ainda não conhecia a casa). Saber mais alguma coisa, enquanto o mar que vinha roçar os molhes murmurava e a brisa soprava com doçura, fazia-me sentir menos pequena face a serviços completos de loiça italiana, fossem eles quantos fossem. Um pouco mais segura, mais corajosa talvez.

As recordações, como são sempre, acabaram por ser interrompidas por outra lembrança do coronel, algo que ele entretanto se esquecera de me comunicar. Falou de uma festa, referiu o presidente da câmara municipal. Como caminhávamos lado a lado, o coronel não viu o ligeiro sorriso que esbocei ao ser mencionado o autarca da vila onde rapazes cheios de sexo serviam à mesa em cafés.
Pois o coronel não sabia que eu conhecia aquele sítio. Eu já ali tinha estado antes.
O coronel não sabia que, em tempos, eu conhecera o actual presidente da câmara.

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