segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Hotel na areia

Nos seus tempos áureos enquanto estância balnear, Saint-Michel-en-Grève chegara a ter seis hotéis em funcionamento simultâneo. Na primeira década do século XX, tinha sido acessível por comboio.
Mas fazer praia na Bretanha tinha passado de moda, os banhistas corriam agora para sul. Nós não. Tínhamos um quarto no único hotel daquela praia sem comboio. Apesar disso, ali estava eu, ali estávamos nós, chegados de automóvel, pela estrada costeira que contornava a baía.
A ideia de vir até ali tinha sido dele. Claro. Mal podia acreditar quando ele parou o carro em frente ao hotel, entre a baía e a vila. A baía era impressionante, mas a vila não. Era ali que iríamos ficar?
- Passámos por mil sítios mais interessantes do que este no caminho.
Não havia discussão possível. Íamos mesmo ficar naquele quarto virado para a imensa baía escurecida. Digo escurecida porque o tempo estava invariavelmente cinzento, por vezes nuvens mais carregadas largavam água ocasional.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Um dos sítios mais incríveis

No dia 22 de Agosto, descalcei-me e pus os pés na areia da praia de Saint-Michel-en-Grève.
Já não sei descrever a luz amarela que havia no horizonte e as nuvens tão negras que choviam sobre a praia.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

De manhãs de luz e mistério

Ao contrário do que possa pensar, é na ausência de informação que encontramos mais espaço para falar ou escrever. Imagine que conhece uma meia dúzia de factos, uma meia dúzia que lhe deixa metros de lacunas, de espaços em branco. É aí que a criatividade tem lugar. Coloque trinta hipóteses, mais cinquenta variáveis. Agora pense em todas as possíveis ligações e justificações. Pode ficar a divagar sobre isso durante horas. Eu sei, já me aconteceu.
Sei que havia uma pessoa num automóvel vermelho no lugar do condutor, que não era eu. Apetece-me dizer-lhe que o meu vestido é que era vermelho, uma cor associada a um certo feminismo tido por imoral e potencialmente mortal. Mas não, o meu vestido não era vermelho, nem interessa de que cor era. Nem a do automóvel, para dizer a verdade.
Penso apenas nesse automóvel que saía da Praça das Flores ao final da noite. Sei o nome do condutor, a idade, o que faz. Sei do peso triste que carrega nos olhos quando me olha. Eu estava nesse automóvel vermelho e tentava sorrir aos olhos tristes.
Sei que ele me disse tanta coisa nessa viagem. Disse-me tanto que no fim de contas não era nada. Porque a tristeza do olhar era o que me interessava, era o que me mantinha longe dele. Apesar de estarmos sentados um ao lado do outro. Veja os espaços em branco: eu estava ali por convite do condutor, mas não havia uma coerência ligando o convite, o motivo ou a consequência da viagem iniciada na Praça das Flores. Nada. Só uns olhos tristíssimos, e elogios repetidos; a incoerência fascinando-me, atraindo-me. Como quando conhecera aquela figura que agora me conduzia, meses antes.
Sim, eu conhecia-o. Era a terceira vez que nos cruzávamos, intervaladas por meses. Esses meses também eles espaços em branco, lacunas. Mas as lacunas interessavam-me. Talvez por isso tenha entrado naquele carro.
Eu sabia o trajecto, a viagem era curta, em breve chegávamos ao sítio onde me deixaria. A manhã começava e uma pequena ideia - pequena, pequenina - de romance instalou-se no interior do automóvel. Mas ainda ali, olhares, palavras, convite, viagem nada tinha coerência. Só um mistério de olhos tristes. Tristes, tristes, tão tristes que ameaçavam lacrimejar. Mas um mistério, uma incoerência que não se deixava revelar.
Ficava-me o pensamento para aquela manhã fria (sei que era fria porque tinha vestido uma malha por cima do vestido) mas já cheia de claridade, quando saltei de um automóvel vermelho que criava aquela pequenina imagem de romance. Era tão pouco e ao mesmo tempo tanto. Pelas lacunas enormes entre cada palavra, cada gesto, cada olhar daquele bicho de tristeza humana.
Talvez a cor interesse afinal. Porque concreta. O meu vestido era cinzento, o automóvel era vermelho, a manhã era azul. Eu gostei desse momento. Concretamente. Concretamente lhe digo que despojado de tanto elemento desgarrado, era uma manhã de Verão que começava à luz de uma claridade ainda fria. Mas de uma beleza tocante, direi.
Eu sei de bichos tristes e incoerentes, sei de lacunas e espaços em branco. Sei que há uma espécie de proto-classe profissional - os historiadores - que se divertem com esses espaços em branco, com a ausência de documentação. Ou então desesperam-se com ela.
Daí essa minha alusão ao concreto. Pois quem não quer se encontrado, não o é.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Como nos filmes - o outro lado

Junto à máquina de café, a galhofa era muita. Até que se aproximou alguém que me perguntou:
- Quanto é que custa o café nesta máquina? - E baixou os óculos escuros.
Olhava-me. Estava lançado o momento. Até já lhe estava a ouvir a música.
- Três e... Ah, não, trinta e cinco cêntimos!
Riu-se, olhando-me com uns olhos expressivos que sorriam com a boca.
- Três e...? O quê, cinco? - Os olhos eram grandes e tinham sido descobertos de propósito para me ver melhor (eu sei). E, sobretudo, para me sorrirem. Tudo era generoso naquela pessoa e eu só via os olhos e o sorriso. Apetecia-me gritar por tudo ir tão bem, tão desenhado.
A minha atrapalhação, também parecendo de propósito, não cessava. E os olhos bonitos que tinham propositadamente começado aquilo, riam a cada coisa. Gritar, gritar, gritar. Mas eu sorria apenas, muito, enquanto esperava pelo meu café.
Tantos gritos dentro de mim.
No fim, passando, ainda me sorriu de novo e acenou. Ah.
E pensei de imediato em Solange Garnier que chega a casa e diz à irmã:
Je viens de rencontrer l'homme de ma vie.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Como nos filmes

Ele queria muita coisa, pois queria. Ele dizia que faria isto, que faria aquilo, que faríamos tudo. Tudo, uma fartura. A própria prosa que lhe saía da boca e dos dedos era balofa, transbordando de fartura, expressões rebuscadas que lhe caíam da boca como de uma tigela cheia (muitas que já tinham caído em desuso), complicadíssimas adjectivações, uma tentativa de casar Bernadim Ribeiro com Júlio Dinis. Para recreação própria e para encher os ouvidos e os olhos dos outros. De tanta fartura, havia uma imagem - no meio de tudo o que ele queria, de tudo o que ele faria - particularmente sedutora. Talvez pela simplicidade, que destoava no meio de toda a gordura verbal. Ele que queria tanta coisa e exprimia os seus desejos através de frases impossíveis, soubera juntar meia dúzia de palavras simples e criar uma ideia impregnada de belo.

Isto até ter descoberto que essa imagem repleta de beleza e simplicidade a tinha ido buscar a um filme, omitindo a origem. Percebi logo que era aquela a sua fonte para a única coisa que lhe saíra a direito da boca. Uma pena. Um choque digno de Tatyana Larina que descobre a personalidade de Onegin dispersa pela respectiva biblioteca.
Pois, também recorro a referências. Não lhes omito é a origem.

domingo, 8 de maio de 2011

Carta de Raquel a Julião

Julião,

Parto. Parto e deixo-te esta carta, na esperança de que por uma vez me ouças, coisa que tentei fazer de outras maneiras, mas sem sucesso.
Não posso continuar neste hotel, não posso: é escuro, deprime-me, a entrada não tem um momento de luz que seja durante o dia todo. Pior, não se houve um ruído.
A compensar o que o hotel tinha de feio, eu tinha a tua beleza por perto. Isso bastava-me. A tua barba, os teus olhos tristes, o teu sorriso. A tua barba. (Sim, ainda a sinto na ponta dos dedos.)
Tinha comigo tudo o que em ti me tinha cativado. E por isso vim até aqui, como por isso tinha aceite o teu pedido de casamento. (Uma felicidade indescritível, a tua barba pediu-me em casamento.) Esta cidade, que me entretive a descobrir; este hotel, que me entretive a suportar. Simplesmente porque a tua barba até ele me tinha trazido, a tua barba, o teu sorriso, a tua voz. Isso era razão suficiente para explorar a cidade e suportar o hotel. Todos eles - a tua barba, o teu sorriso, a tua voz - me disseram que precisavas de vir para cá. E eu vim. Porque os tinha comigo.
Eram eles os meus companheiros nestes corredores vazios, nesta entrada verde-escura e deprimente, na sala de jantar que não ultrapassa os 10% de ocupação, nesta gruta de silêncio, enfim.
Mas pior que o silêncio deste hotel, é o teu. E se ele não te permite responder-me, falar-me, fico com a terrível sensação de que tenho apenas os teus olhos, o teu sorriso, a tua barba. Senão os perdi já também.
Não me procures, não me escrevas, não me telefones. Gostaria que o fizesses, mas não o faças. A beleza dos teus olhos tristes já não compensa o hotel silencioso, tal como o teu silêncio já não compensa a beleza da tua barba.

Adeus,
Raquel

sexta-feira, 18 de março de 2011

Epílogo de uma história para acalmar II

Eu imaginava que chegando ao local destinado, o ruído da voz cessaria. Depois de subir essas ruas que alvoreciam, tínhamos enfim chegado. Aí, fingi hesitar. Todo eu era fingimento, sob aquela luz esbranquiçada, deixando que as coisas acontecessem como eu as queria.
Só a voz escapava ao meu controlo. A voz, a voz que não se calava. Mas as minhas previsões estavam certas: chegando, a loquacidade da voz estava em vias de diminuir. Felizmente.
Recordo as muitas janelas, cada uma dando para uma varandinha com grades de ferro, cada uma com as portadas cerradas, pelo que a sala apenas lentamente começava a sair da penumbra. Recordo apenas isso, a luz esbranquiçada da manhã que tentava contornar as portadas de madeira, essa pálida progressão acontecendo enquanto o silêncio era somente ao de leve corrompido. Porque conseguira enfim que a voz correspondesse aos meus desejos.
Recordo esse silêncio matinal com apreço, essa minha vitória sobre a voz loquaz. Tirando essa leve corrupção do silêncio, a sala estava até bastante quieta, tão quieta e protegida do exterior que apetecia uma pessoa perder-se um pouco por ali.
Ah, claro... Recordo igualmente um pormenor - apenas um - do aposento. Ficou-me gravada na memória uma estante, bem visível do sítio onde eu estava. Nas suas prateleiras havia livros, empilhados na horizontal. Pelas lombadas reconheci colecções saídas com jornais e revistas. Tive pena e ao mesmo tempo odiei aqueles livros, que pela posição horizontal certamente nunca seriam lidos. Recordo muito bem isso, o que senti ao deparar-me com aqueles pequenos infelizes.
Depois, pude ainda ver que depois da sala havia uma sala de jantar, também ela na penumbra apesar da manhã, depois algures à esquerda creio que havia uma porta para o quarto e ao fundo uma casa de banho que se desdobrava em vários compartimentos. A cozinha, perdia-a algures no caminho.
- Ainda bem que não convidei os meus pais para almoçar...
Ainda bem, ainda bem. Que se calasse, de uma vez. Porque para fazer uso de uma manhã esbranquiçada como aquela, bastava o tacto, a visão, o paladar, se quisermos o olfacto. Nunca a audição. E a voz não sabia isso. Assim como não sabia o significado de livros empilhados na horizontal. Recordo tudo isso. Era uma voz criminosa.
Ainda bem, ainda bem.
Recordo a luz do dia, que não se decidia por uma cor definida, que era uma cor leitosa apenas. O suficiente para ver a rua com clareza e ver as lojas fechadas, o suficiente para caminhar com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, o suficiente para fingir. Olhando para mim, para dentro de mim, só vi branco. Branco, enfim. E estava tudo muito bem.
Ainda bem. Ainda bem.

sexta-feira, 11 de março de 2011

O carnaval de Lisboa

Uma ponta de romantismo, uma ponta de baile na Ópera, uma ponta de oitocentismo pedante.
- Posso ver o seu rosto?
Apenas essa ponta.
Isto tem um sentido, o ter uma máscara dourada que me esconde metade da cara, por isso não, não pode ver. Mas obrigado por ter perguntado.

terça-feira, 1 de março de 2011

Epílogo de uma história para acalmar

É verdade, nessa manhã as lojas não abriram. As lojas fechadas e eu na rua, fazendo o inverso dos outros. Nessa manhã, subi aquela rua. Atravessei depois uma pequena praça, subi ainda outra rua e depois outra, depois outra. Sei que algures no caminho fiz um desvio, mas não me recordo exactamente onde.
Subi essas ruas, fingindo não saber para onde me dirigia. Tinha as mãos nos bolsos do casaco, fingia que tinha frio. Caminhava. E é também verdade que ao meu lado caminhava uma voz. Uma voz que tinha pernas, braços, um tronco, uma cabeça. Apesar desses detalhes físicos, era a voz que eu ouvia enquanto subia rua atrás de rua, fingindo não saber para onde me dirigia. Porque a voz não se calava. Ela não percebia o valor, a beleza do silêncio, especialmente numa manhã como aquela, em que o ar era frio e esbranquiçado. Se caminhávamos nessa manhã de lojas por abrir, mais valia que fosse em silêncio, essa criação tão subestimada. Há certos momentos em que a palavra falada simplesmente não é bem-vinda, por ser uma hábil assassina. Mas a voz - era uma voz ignorante, claro - não se calava. E dava-se ao luxo de ser uma voz sensível, que reagia mal ao meu sarcasmo. Por isso eu tentava concentrar-me nas pedras da calçada, nas lojas fechadas, no ar frio e esbranquiçado. Fingindo não saber para onde me dirigia, esperava que não faltasse muito para lá chegar.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Alberto por Margarida

Alberto. Margarida observando Alberto. Margarida conhece os gostos musicais dele e sabe que são bons (ou seja, compatíveis). Margarida não gosta dos ombros estreitos de Alberto. E observa.
Alberto falando com José em animado diálogo, nem parece muito preocupado com a ausência prolongada de Joana. Que é a namorada de Alberto, claro está.
Joana acaba por aparecer, estivera na rua fumando com outros. Decidem depois meter-se os quatro num táxi e quatro euros depois chegavam ao destino. Margarida sabe que Alberto e Joana tinham planeado outra coisa, mas estão ali agora, com ela e com José.
Alberto e Joana caminham à frente e Margarida observa-lhes as mãos dadas. Margarida no seu casacão, lançando baforadas de fumo do seu cigarro, enquanto José ao seu lado fala, fala... e ela concentrada nos ombros estreitos de Alberto, que deviam ser mais largos para dar o toque de charme que faltava à personagem. Isto pensava ela.
O sítio era escuro, escuríssimo. E Margarida perguntava-se porque estaria Alberto ali com Joana. Joana ria, simpática e galhofeira. Alberto de vez em quando desaparecia, indo passear a sua barba pela sala. Naquele sítio, homens procuravam outros homens.
E foi então que Margarida, ali sem casaco, mas ainda suspirando fumo, percebeu. Sentiu uma tristeza gélida e instantânea, que é o que se sente perante uma descoberta que lhe pareceu brutal.
Alberto e os seus ombros estreitos traziam Joana até àqueles locais para que ela visse que ele tinha opções, toda a atenção que quisesse.
Por momentos, Margarida quis agarrar o braço de José e contar-lhe a sua descoberta. Depois achou tudo ridículo e decidiu continuar a dançar.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

confissão

É verdade. Sacrifiquei a verdade dos factos em favor da fluência do discurso.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Tarde de sol

- Anda, vamos passear...
E fomos. Seria uma pena não aproveitar aquele sol de Inverno que praticamente nos implorava que o tomássemos como companheiro para depois da refeição. Fomos e até saímos duas estações de metro antes para mais depressa respondermos a esse pedido.
Caminhámos sob essa luz benéfica, falando, falando sempre, que é uma das coisas que fazemos melhor. Fomos até uma varanda que a cidade tem sobre o rio. Tentei encontrar entre a neblina a baía do Seixal.
- Sabes, ali há um passeio ao longo do rio, tudo ajardinado, com uns cafézinhos simpáticos...
Porquê esta obsessão com a informação? Não poderei passar sem lançar um conjunto de referências?
Decidimos continuar, ir mais para cima, até S. Pedro de Alcântara. Aí estávamos à sombra, o vale da avenida a nossos pés. De onde vem esta apetência para os grandes panoramas? O que é certo é que a vista era boa e condizia com a nossa paz. Olhando para esses sucedâneos do vazio, visitávamos as bases, as concertações da nossa amizade. Fazíamos planos.
- Havemos de ir ali, à Graça... Havemos de meter-nos num comboio e ir até...
Deve ser esse o segredo dos grandes panoramas e da afeição que suscitam: pelo espaço que contêm, os olhos encontram lugar para esvaziar as mentes. Para que fique apenas o essencial, mesmo que o essencial seja uma mera certeza, uma confiança partilhada. Entre nós e com a cidade, para que seja nossa aliada. Para que ela, rodeada de sol e de rio, nos conserve.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

depois do almoço

Ainda bem que me ouves e te sinto a ouvir-me. Ainda bem que paraste o carro e me ouves.
É que não ando por aí às cegas, sem fazer a mínima ideia de nada. Não. Preciso apenas que saibas que sou como sou e não estou à procura de uma mudança. Não. Deixo apenas as coisas acontecer. E esse deixar depende do meu arbítrio.
Se por uma noite perdi o controlo, se por uma noite me deixei ir, ainda aí tive uma palavra a dizer. Ainda que por uma noite me tenha deixado surpreender. A questão é que há uma frieza pensante em mim, pelo que fui eu próprio a decidir o que fazer dessa surpresa que me atacou.
Porque não posso apenas rir-me de forma parva e dizer-te que isto até podia ser uma cena de teatro?
Não estou à procura de alguém que me diga quais as decisões correctas, nem sequer de um correctivo para a vulnerabilidade a esta ou aquela surpresa. Não. Se sou como sou e se aceito a beleza da existência em tudo o que ela proporciona. Alguém terá feito a minha carta astrológica e visto que este tipo de volte-faces para mim constituiriam um mistério (claro que um mistério), mas um mistério de certa forma bondoso. E na aceitação dessa evidência, está a explicação de muita coisa. Talvez não te consiga fazer ver a beleza dessa aceitação, tenho verificado ultimamente que falho em fazer os outros renderem-se às evidências do que for - de uma manhã de sol, por exemplo.
Eu sei por que és assim. Porque tomaste para ti essa cruzada contra a turbulência e a instabilidade, os teus grande inimigos. Tanto que até paraste o carro e me ouves. Ainda bem. E até o paraste num sítio bonito com muitas árvores e o dia está tão agradável: é para isso que eu gostaria de te chamar a atenção. Ainda bem que me ouves.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Carta de Mariana a Julião

Caro sr. Julião,

Parti esta manhã. Sabendo que não o veria mais, mas não querendo que ficasse sem saber o efeito que em mim causou, decidi escrever-lhe.
A primeira vez que o vi foi na sala de jantar. Vi-o sentado à mesa, a escutar um outro homem. Fique sabendo que me causou forte impressão essa visão em plena sala de jantar, entre o leve tinir dos copos e dos talheres. O seu rosto arredondado e a sua barba espessa apesar de rente prenderam-me a atenção. Ali, à luz branca das cortinas.
Nos dias seguintes ficava toda contente se me cruzava consigo no corredor ou nessa mesma sala de jantar. Era a barba.
Pois esta carta tem um propósito específico, contar-lhe exactamente o que se passou há duas tardes atrás. Entrei vinda de um passeio que dera até à Sé e eis que o vejo num dos sofás da entrada, adormecido. O jornal aberto sobre os joelhos, a cabeça caída levemente para trás. A entrada vazia, o rapaz da recepção desaparecido. Aproximei-me.
Quando estava já muito perto, não resisti e estendi a mão. Afaguei-lhe a barba, sentindo-a tão forte, tão densa, tão negra sob os meus dedos. Gostaria de ter deixado os meus dedos afundarem-se nela, na sua barba, mas temi acordá-lo. Então afastei-me. Tremia.
Era isto que não queria que ficasse sem saber, que me aproveitei de um momento de sono seu para deixar que os meus dedos se deliciassem com a sua barba tão negra e espessa e da qual eles ainda conservam a memória.
Estou agora a caminho de Évora e nesta viagem em que venho acompanhando meu pai, creio não ter visto homem mais bem-parecido, com a barba que fosse tão bem com os olhos, o nariz, o sorriso.
Lamento apenas uma coisa: que com essas camisas, coletes e casacos tão chegados ao corpo, os meus dedos não lhe tenham podido tocar.

Creia-me sempre sua respeitosa amiga,
Mariana

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Correio das leitoras #3

Um gajo assustador no autocarro tentou dar-me o número de telefone escrevendo-o no livro que estava a ler e depois quase me espetando o livro na cara.

Joana Lourenço, Loures (via email)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Pátio das Traseiras

Já arrancou o Pátio das Traseiras, novo projecto bloguístico que pretende essencialmente ser um espaço que proporcione reflexão e seja um contributo no combate à homofobia.
Podem encontrá-lo e acompanhá-lo aqui. Vá, é pequenino, vão lá dar-lhe algum amor.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Manhã avançada IV

A minha decisão face àquele hálito sonoro e aromatizado seria escolher se agia em função de alguma espécie de orgulho ou honra ou de acordo com alguma forma de egoísmo que podia muito bem ser concretizada a dois. Fosse como fosse, nunca haveria vencedores nem vencidos. E desse ponto de vista, até era perfeito, sobretudo se pensarmos que tudo estava a acontecer devido a uma boca que cheirava a bosque e a tabaco numa sala escura. O problema, como já foi referido, era apenas meu.
O meu único pensamento para o resto da humanidade foi por causa das idealizações. O seu único defeito era não resistirem ao choque com a realidade. Se não fosse isso, garanto, seriam a criação mais perfeita da espécie humana em toda a cronologia da sua existência.
Voltando à realidade, eu tinha aquela boca e tudo o que ela produzia. Não é sequer preciso pegar nos outros traços mais vagos como eram a cara que essa boca tinha, os pêlos da barba grisalha semeados nas faces, a cor das hastes dos óculos, o corpo que essa boca tinha. Não, nada, se a boca era tão rica como um bloco de papel liso e uma caneta que nele desenhasse.
Sair dali foi o melhor que fiz, mesmo que os vagos contornos do dono da boca se tenham tornado mais nítidos. Saindo, encontrei a luz da manhã, que era em tudo preferível àquela escuridão onde pessoas feias dançavam ao som de uma qualquer música digna de alienados.
Havia um rio e edifícios. E um silêncio marítimo que era em tudo muito bonito, lembrando o resto das coisas. Tudo estava a impor um final àquele drama cómico em três actos protagonizado por um par de lábios que cheirava a bosque e a fumo. Olhando agora, daqui, era até incrível o seu poder. Mas depois chegara à sala dos mais-que-usados em saldo e ditara o seu próprio fim. Se bem que até isso fosse incrível... Fica isso, não mais do que isso, o cheiro forte, fortíssimo, a tabaco e a floresta - um cheiro falante - e uma réstia de poder.
Porque depois do sol (felizmente fazia sol), do rio e dos edifícios, foi a campainha dos primeiros eléctricos que passavam. Lembrando as coisas e a sua vitalidade. E senti que, pelo menos naquele momento, já nem queria saber do pratinho da desilusão que os homens gostavam de ir servindo.

Manhã avançada III

Ele falava. Desde o início que falava e nisso, realmente, a profissão de comunicador social assentava-lhe bem, na perfeição. E claro que começara por ter a sua graça naquele sítio tão desagradável. Convenhamos, ele falava bem (era um comunicador) e assumira a sua posição naquele fim de noite com algum encanto. Senão também não o teria deixado falar.
Mas a dada altura, quando o sol já declarara a manhã irrevogável, a desilusão era o meu problema, real, palpável. Creio que é sempre com algum terror que se faz semelhante constatação. Devia haver algum decreto, alguma lei, uma mísera portaria ministerial que fosse, que proibisse a desilusão.
Era inútil procurar respostas na minha lista de referências e suas atitudes em relação ao sexo e aos sentimentos porque aquele problema era meu. João não parecia ligar a nada, Margarida sabia quando via um homem e o queria ou não, Júlia Grei era já uma referência demasiado pesada para a tentar dissecar àquela hora da manhã, com tantas horas sem dormir e com tanto álcool ingerido. De nada me servia pensar neles, se a minha sina parecia ser comer desilusão da tigela que eu voluntariamente estendia a cada homem e cada homem com diligência enchia.
E isto porque a boca fragrante permanecia aberta, expelindo palavras atrás de palavras de louvor a mim, a ele, aos dois.
Dado o problema, uma coisa me restava: decidir.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Manhã avançada II

Pouco provável seria que as palavras de Margarida não fossem essas. Se Margarida caminhava pelo estádio ao fim da tarde para se fazer admirar pelos homens suados que jogavam futebol, era claro que diria aquilo. Simplesmente porque sabia o que fazer. Para ela não havia segredos, jogos, segundos sentidos.
De certa forma, para mim também não haveria segredos naquela noite que já ia demasiado longa, que já se transformara em manhã. Digo isto porque se naquela sala horrivelmente escurecida, cheia de pessoas feias e música atroz, houvesse uma mesa de tipo hospitalar e o dono da boca que me falava (sim, era um hálito com dono) sobre ela se deitasse, tirasse todas as suas roupas e alguém me passasse para a mão o conjunto dos seus exames clínicos, eu ficaria igualmente esclarecido. Porque o hálito falante não se poupava a pormenores, todas as suas palavras eram claríssimas e não havia forma de eu não ficar a saber tudo sobre ele e as suas intenções.
Por isso digo que não haveria segredos também para mim. Mesmo que eu não quisesse.
Mas eu tinha um problema. Eu achava que não tinha nascido para entender os homens. Porém, eles próprios faziam por serem completamente óbvios, o que me deixava uma questão. Seria eu que, nalguma espécie de pena bizarra, fazia por esquecer aquela intrínseca simplicidade masculina? Dava-lhes eu esse benefício para não ter como única alternativa desprezá-los?
Entretanto aquela boca falava sempre, eu sentindo o hálito cada vez mais próximo e sem ter ainda chegado a uma conclusão, por mais simples que fosse. Nem pensando em João, em Margarida ou na minha suposta ancestral Júlia Grei. Tenho a certeza que, para ela, o imediato da sensação e do sentimento era o mais importante. Isso angustiava-me. E ia deixando-o falar.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Manhã avançada

O traço mais marcante, aquele que melhor recordo, será o hálito, que cheirava a tabaco e a qualquer coisa de "florestal", uma estranha mistura de madeira e plantas.
À falta de sentido mais apurado àquela hora, eu tinha um hálito que comigo falava. Talvez seja mais correcto dizer que me falava porque a minha participação no diálogo era quase nula, quase desnecessária.
Faço disto um exercício de escrita, mas sei que não conto apenas por contar. Encontro-me, sim, dividido entre a fixação um pouco obsessiva de detalhes e a cristalização de um momento como exercício de observação (eu sabia que nunca poderia ser apenas de escrita).
Cenário e figurantes nada tinham de interessante, eram até bem deprimentes. Mas eu tinha aquela voz aromatizada que me falava, aquele par de lábios que me transmitia ideias ao ouvido, e só por isso o momento já tinha o seu valor.
Enquanto ouvia, pensava em João e no que faria João se estivesse naquela situação. João era a pessoa que eu admirava e que, em parte, gostaria de ser. Daí eu pensar em João.
Porque para João tudo era muito fácil. João saía de casa com Margarida por um braço e um termo cheio de gin com laranja no outro e depois iam sentar-se num relvado do jardim próximo, bebericando de chávenas de plástico colorido.
Mas porque pensava em João naquela sala escura, àquela hora da manhã? Preferi concentrar-me no facto de ser eu quem tinha um homem que me falava com todo o à vontade e que por mim parecia disposto a esquecer tudo. Expunha-se demoradamente, com paciência e precisão, e em toda a conversa desabrida, havia subtilezas que iam tomando conta de mim, como se fosse o seu próprio braço a rodear-me a cintura. Eu ouvia-o e não me parecia nada descabido pensar se não seria eu o herdeiro natural de Júlia Grei, essa jovem mulher que vivia um pouco segundo o ritmo que os homens e os seus desejos lhe iam impondo numa Lisboa pós-revolucionária.
Era algo que eu nunca contaria a João, porque adivinho a cara de desprezo e sobranceria que me lançaria. E eu não queria uma cara dessas vinda de João, muito menos tratando-se de uma história em que um homem com todo o encanto se aproximava perigosamente do meu olfacto.
Com Margarida também não contava partilhar o episódio. Porque ela me diria: "sabias o que fazer".
Agora, fico-me por aqui.