sexta-feira, 18 de março de 2011

Epílogo de uma história para acalmar II

Eu imaginava que chegando ao local destinado, o ruído da voz cessaria. Depois de subir essas ruas que alvoreciam, tínhamos enfim chegado. Aí, fingi hesitar. Todo eu era fingimento, sob aquela luz esbranquiçada, deixando que as coisas acontecessem como eu as queria.
Só a voz escapava ao meu controlo. A voz, a voz que não se calava. Mas as minhas previsões estavam certas: chegando, a loquacidade da voz estava em vias de diminuir. Felizmente.
Recordo as muitas janelas, cada uma dando para uma varandinha com grades de ferro, cada uma com as portadas cerradas, pelo que a sala apenas lentamente começava a sair da penumbra. Recordo apenas isso, a luz esbranquiçada da manhã que tentava contornar as portadas de madeira, essa pálida progressão acontecendo enquanto o silêncio era somente ao de leve corrompido. Porque conseguira enfim que a voz correspondesse aos meus desejos.
Recordo esse silêncio matinal com apreço, essa minha vitória sobre a voz loquaz. Tirando essa leve corrupção do silêncio, a sala estava até bastante quieta, tão quieta e protegida do exterior que apetecia uma pessoa perder-se um pouco por ali.
Ah, claro... Recordo igualmente um pormenor - apenas um - do aposento. Ficou-me gravada na memória uma estante, bem visível do sítio onde eu estava. Nas suas prateleiras havia livros, empilhados na horizontal. Pelas lombadas reconheci colecções saídas com jornais e revistas. Tive pena e ao mesmo tempo odiei aqueles livros, que pela posição horizontal certamente nunca seriam lidos. Recordo muito bem isso, o que senti ao deparar-me com aqueles pequenos infelizes.
Depois, pude ainda ver que depois da sala havia uma sala de jantar, também ela na penumbra apesar da manhã, depois algures à esquerda creio que havia uma porta para o quarto e ao fundo uma casa de banho que se desdobrava em vários compartimentos. A cozinha, perdia-a algures no caminho.
- Ainda bem que não convidei os meus pais para almoçar...
Ainda bem, ainda bem. Que se calasse, de uma vez. Porque para fazer uso de uma manhã esbranquiçada como aquela, bastava o tacto, a visão, o paladar, se quisermos o olfacto. Nunca a audição. E a voz não sabia isso. Assim como não sabia o significado de livros empilhados na horizontal. Recordo tudo isso. Era uma voz criminosa.
Ainda bem, ainda bem.
Recordo a luz do dia, que não se decidia por uma cor definida, que era uma cor leitosa apenas. O suficiente para ver a rua com clareza e ver as lojas fechadas, o suficiente para caminhar com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, o suficiente para fingir. Olhando para mim, para dentro de mim, só vi branco. Branco, enfim. E estava tudo muito bem.
Ainda bem. Ainda bem.

2 comentários:

Luísa A. disse...

Adoro. Esta segunda parte é perfeita. Se já gostava do início aqui tudo é ainda mais delicioso! A descrição está fantástica. Os detalhes são minuciosos ao ponto de me sentir nessas ruas e salas. Adoro cada toque e o momento da citação da voz e a resposta da pessoa. Está mesmo óptimo! Nem sinto que consiga dar um comentário mais profundo por agora. Vou seguir esta história dedicadamente.

Lemon disse...

quero mais!!