Garanto que desta vez não vou recorrer a outras referências, para que tudo saía mais puro, menos cínico e sem o peso das comparações que, se trazem informação, correm igualmente o risco de reduzir a intensidade do relato.
Por isso, basta-lhe saber que, naquela noite, acabámos por nos encontrar todos num terraço. Estava tudo muito calmo e o facto de, entre os quatro, haver uma quinta vida em gestação parecia deixar toda a gente mais bem-disposta e faladora. A ideia de um bebé que se avizinhava dava a todos uma garantia de futuro, uma crença na evolução das coisas e na possibilidade de felicidade, fossem quais fossem as circunstâncias políticas, económicas ou culturais. O facto de um homem e uma mulher se juntarem e conceberem uma vida ascendia à categoria de dogma e ao conforto que lhes está muitas vezes associado.
Nesse quadro de paz que se desenrolava sob a frescura do luar, a minha história era inexistente.
Ninguém teria de saber que eu, inadvertidamente, me apaixonara, que não tinha dado grande atenção aos sinais de perigo e que, quando dera por mim, já não me pertencia. Ninguém teria de saber isso, que fora paixão o que me acontecera (hoje posso chamar-lhe isso, sem qualquer dúvida) e que eu nem a percebera logo. Tinha percebido depois e com essa descoberta sofrido. Mas ninguém teria de saber isso naquele terraço fresco e aberto para o rio. Os outros - o homem, as mulheres, o bebé que numa das barrigas crescia - não saberem era quase o mesmo que eu não saber e estava o caminho aberto para que a minha história nem sequer existisse.
Era melhor que o terraço, o luar, o rio, o ar fresco e humedecido prevalecessem. Era melhor que a futura mãe me sorrisse e abrisse muito os olhos enquanto nos falava, o futuro pai tivesse uma camisola de riscas azuis e brancas e que a jovem com um vestido de renda preta partilhasse com a outra histórias de maternidade na família. Porque, como já disse, havia um bebé entre nós e isso deixava toda a gente meio drogada de felicidade. A minha história não existia. As pessoas que nos rodeavam eram inofensivas, figurantes necessários ao nosso quadro de simpatia e confiança, e a música que passava no terraço não era nenhuma melodia que me lembrasse como as minhas esperanças tinham sido vítimas de um mau jardineiro.
O trabalho para apagar a minha história revela-se moroso e, naquela noite de terraço em que eu achava que ela poderia existir um pouco menos, ela não queria. Porque o jardineiro que deixara que as minhas esperanças crescessem e se tornassem viçosas sem depois cuidar delas achara por bem dizer-me na noite anterior que sentia a minha falta. Era um jardineiro mau e cruel. E essa crueldade renovara a existência da minha história e da minha dor. Afinal do mal também se alimentam as plantas.
Nós os quatro no terraço éramos bonitos e mais bonitos ainda por haver um bebé entre nós. Havia vestidos pretos com rendas, camisolas de padrões navais, camisas vaporosas e calções que estrategicamente acabavam um pouco acima do joelho. A futura mãe bebia água com limão e o terraço era banhado pelo luar, pela humidade fluvial e pela música. Sei que falámos de bebés, da cantora que víramos actuar, de bisbilhotices várias, de Margarida que viajara até Israel. Brotávamos beleza e eu pensara que o luar trataria de não alimentar as plantinhas que eram as minhas esperanças, aquelas que agonizavam em terra pouco fertilizada. Mas quem diria que, mais poderosa que o luar, era a crueldade de um mau jardineiro?
A minha história existia e com ela a minha impotência. Os barquinhos que cruzavam o rio escuro eram mais voláteis que a minha dor e que o meu peito feito canteiro espezinhado.
Eu bem queria que bebés em gestação e camisolas às riscas fossem mais importantes, mas a minha impotência era maior. Acabei por confessar na varanda "Porquê?", mas somente à minha companheira de vestido com rendas, pois ela sabia da história. Sabia. Os outros permaneceram sem a saber. Apesar de tudo, eu ainda acreditava que esse era um passo para que ela acabasse por desaparecer.
Se um homem e uma mulher se juntam e concebem uma vida, como não podem um homem e outro homem juntar-se e conceber simplesmente amor?