domingo, 9 de setembro de 2012

O terraço

Garanto que desta vez não vou recorrer a outras referências, para que tudo saía mais puro, menos cínico e sem o peso das comparações que, se trazem informação, correm igualmente o risco de reduzir a intensidade do relato.
Por isso, basta-lhe saber que, naquela noite, acabámos por nos encontrar todos num terraço. Estava tudo muito calmo e o facto de, entre os quatro, haver uma quinta vida em gestação parecia deixar toda a gente mais bem-disposta e faladora. A ideia de um bebé que se avizinhava dava a todos uma garantia de futuro, uma crença na evolução das coisas e na possibilidade de felicidade, fossem quais fossem as circunstâncias políticas, económicas ou culturais. O facto de um homem e uma mulher se juntarem e conceberem uma vida ascendia à categoria de dogma e ao conforto que lhes está muitas vezes associado.
Nesse quadro de paz que se desenrolava sob a frescura do luar, a minha história era inexistente.
Ninguém teria de saber que eu, inadvertidamente, me apaixonara, que não tinha dado grande atenção aos sinais de perigo e que, quando dera por mim, já não me pertencia. Ninguém teria de saber isso, que fora paixão o que me acontecera (hoje posso chamar-lhe isso, sem qualquer dúvida) e que eu nem a percebera logo. Tinha percebido depois e com essa descoberta sofrido. Mas ninguém teria de saber isso naquele terraço fresco e aberto para o rio. Os outros - o homem, as mulheres, o bebé que numa das barrigas crescia - não saberem era quase o mesmo que eu não saber e estava o caminho aberto para que a minha história nem sequer existisse.
Era melhor que o terraço, o luar, o rio, o ar fresco e humedecido prevalecessem. Era melhor que a futura mãe me sorrisse e abrisse muito os olhos enquanto nos falava, o futuro pai tivesse uma camisola de riscas azuis e brancas e que a jovem com um vestido de renda preta partilhasse com a outra histórias de maternidade na família. Porque, como já disse, havia um bebé entre nós e isso deixava toda a gente meio drogada de felicidade. A minha história não existia. As pessoas que nos rodeavam eram inofensivas, figurantes necessários ao nosso quadro de simpatia e confiança, e a música que passava no terraço não era nenhuma melodia que me lembrasse como as minhas esperanças tinham sido vítimas de um mau jardineiro.
O trabalho para apagar a minha história revela-se moroso e, naquela noite de terraço em que eu achava que ela poderia existir um pouco menos, ela não queria. Porque o jardineiro que deixara que as minhas esperanças crescessem e se tornassem viçosas sem depois cuidar delas achara por bem dizer-me na noite anterior que sentia a minha falta. Era um jardineiro mau e cruel. E essa crueldade renovara a existência da minha história e da minha dor. Afinal do mal também se alimentam as plantas.
Nós os quatro no terraço éramos bonitos e mais bonitos ainda por haver um bebé entre nós. Havia vestidos pretos com rendas, camisolas de padrões navais, camisas vaporosas e calções que estrategicamente acabavam um pouco acima do joelho. A futura mãe bebia água com limão e o terraço era banhado pelo luar, pela humidade fluvial e pela música. Sei que falámos de bebés, da cantora que víramos actuar, de bisbilhotices várias, de Margarida que viajara até Israel. Brotávamos beleza e eu pensara que o luar trataria de não alimentar as plantinhas que eram as minhas esperanças, aquelas que agonizavam em terra pouco fertilizada. Mas quem diria que, mais poderosa que o luar, era a crueldade de um mau jardineiro?
A minha história existia e com ela a minha impotência. Os barquinhos que cruzavam o rio escuro eram mais voláteis que a minha dor e que o meu peito feito canteiro espezinhado.
Eu bem queria que bebés em gestação e camisolas às riscas fossem mais importantes, mas a minha impotência era maior. Acabei por confessar na varanda "Porquê?", mas somente à minha companheira de vestido com rendas, pois ela sabia da história. Sabia. Os outros permaneceram sem a saber. Apesar de tudo, eu ainda acreditava que esse era um passo para que ela acabasse por desaparecer.
Se um homem e uma mulher se juntam e concebem uma vida, como não podem um homem e outro homem juntar-se e conceber simplesmente amor?

sábado, 1 de setembro de 2012

Um par de calças amarelas

Na outra noite, ao descer uma rua na zona do Bairro Alto, vi um par de calças amarelas pendurado num estendal. Esse par lembrou-me um outro, um que eu desejara ver no chão de uma sala, de um quarto, do que fosse. Lembro-me delas, das calças, porque foi o que primeiro vi, o que primeiro me chamou a atenção. Eu podia mesmo dizer que tinha sido um par de calças que a mim se dirigira e perguntara:
- Já chegaste há muito tempo? - Se dissesse isso não estaria a fugir grandemente à realidade.
Vai-me dizer que falo sempre de memórias e de lembranças, vai-me dizer que escrevo sempre sobre o mesmo. Eu sei. É possível que seja verdade. Mas falo-lhe das lembranças por serem o que ficam, por serem esses insectos voadores que esvoaçam em torno do ranço dos sentimentos. São esses pequenos seres com asas que me levam a escrever, admito-o.
Lembro-me bem porque a manhã desse dia fora especialmente triste e a tarde ameaçava ser uma continuação dessa tristeza, pois estávamos no pino do Verão (ainda se usa essa expressão?), a pior altura do ano para alguém se meter em aventuras, e a avenida era apenas um murmúrio e uma brisa.
Se o par de calças que aquele outro num estendal me lembrara tivesse ficado algures numa interrupção da circulação ferroviária suburbana, a avenida teria continuado apenas a ser murmúrio e brisa. Mas não. Os maquinistas estavam concertados para que essas calças se atravessassem no meu caminho e o seu esquema cromático não deixasse de me perturbar. Tomei esse sacrifício para que os passageiros dos comboios desse dia chegassem onde tivessem de chegar.
Foi um efeito notável, o causado por essas calças. Não por essa primeira visão, mas pelo rendilhado de sentimentos em que me lançaram. Havia algo de imperceptível no dono dessas calças e odiei-me assim que reconheci essa imperceptibilidade e o que nela me atraía.
Porque eu queria, deixei. Deixei que a avenida e todas as outras artérias da cidade deixassem de ser murmúrio e passassem a ser ruído. E ainda que nem sempre compreendesse esse ruído, eu desejava-o, como apenas o desejo sabe ser. Porque eu estive a tempo de parar isso, eu sei que estive. Mas não quis. Esse meu desejo por amarelo (por coincidência uma das minhas cores preferidas) não quis que eu parasse enquanto era tempo.
Assim condenei a minha mão a controlar-se cada vez que queria alcançar a dele. Doía-me o desejo porque o ruído com que ele enchia as ruas, os jardins e os cafés continuava imperceptível. Eu tentava captar coisas bonitas por entre o ruído. Julguei ouvir uma ou duas. E depois quis julgar ouvir mais. Eu julgava julgar. Pois apercebi-me de que, ao abrir uma lata de atum, já não podia voltar a fechar os meus sentimentos dentro de mim, tal como já não poderia voltar a fechar o atum oleoso dentro da lata.
Como julgava ouvir e julgava julgar (não vou questionar a veracidade dessas captações), construí pequenas imagens de partilha e murmúrio. Sim, construí. Diga-me, nunca construiu? Pois.
Há muita coisa que eu não sei e é com alguma frequência que as minhas tentativas de perceber o que não sei saem goradas. Não basta saber que é amarelo. Tal como uma busca ziguezagueante por um elemento biográfico de um funcionário superior dos caminhos-de-ferro (aqueles que o meu coração poupara num determinado dia de Verão) dera muitas vezes em nada, as minhas tentativas para perscrutar entre o amarelo foram infrutíferas. Tinha apenas pistas, incoerentes, incompletas, inimigas. E eu só queria saber porque é que isso fazia delas tão apetecíveis. Eu sei. Eu sei. Eu sei. Mordo o lábio para controlar o choro. Eu sei.
Eu sei.
Não, não é isso. Se uma lágrima me quer galgar a face é porque me comove o mistério das coisas. Apesar de tudo, eu acredito na bondade dos comboios; muitas vezes eles me levaram a momentos que brilhavam de inocência e felicidade. Acredito e é por acreditar que não percebo como o murmúrio passa a ruído e este a silêncio.
Com a mesma facilidade com que tinha descido de um comboio que respeitava escrupulosamente o horário e tomara conta de mim, o amarelo não fez caso dos meus anseios e partiu. Antes de o saber, eu já o sabia. Sabia-o desde que ouvira o ruído impenetrável. Mas o amarelo sendo uma cor tão bonita e por isso enganadora, eu precisava de saber, mesmo já o sabendo. Só para saber. E poder dizer à minha mão iludida "vês?".
Como já sabia, lembrei-me de uma canção e fiz como ela dizia, fazendo com que fossemos a um jardim. Nada nessa escolha foi inocente: para além de ser um jardim como a canção sugeria, era um que eu sabia poder facilmente cobrir com melhores recordações por ser o meu habitual ponto de encontro com uma amiga nos fins de tarde do início desse Verão que começara abençoado e caminhava agora para o desastre.
Nesse jardim, já nem apareceram as calças amarelas. Ele tinha trazido outras. Foi então que me apercebi de como aquela cena de jardim era terrivelmente semelhante a uma outra, aquela em que Onegin vem ao encontro de Tatyana depois de esta se lhe ter declarado. Quis rir-me como essa ideia. Tanto nós como eles estávamos num jardim. E tudo o que havia de mais blasé e displicente em Onegin, havia nele. Tal como havia em mim o mesmo temor que havia em Tatyana que, coitada, ainda foi obrigada a dançar com ele depois de ele a rejeitar.
Não alcançando ele a eloquência de Onegin, a cena perdeu em qualidade, mas o resultado foi o mesmo. Muito laconicamente me foi anunciado que aquele amarelo não seria meu e, nesse momento, todas as ruas, jardins e cafés se encheram de um ruído estridente que eu queria apagar. Porque o ruído, como eu imaginava, era enganador e estava agora por todo o lado, troçando de mim e das minhas construções em amarelo.
É por isso que me comovo e mordo o lábio. Porque de tardes vazias e silenciosas facilmente se fazem longas horas de ruído e destas rapidamente apenas ficam lembranças e frustrações. Como a mancha de óleo que escorreu da lata de atum para o pano. Ou a hora de sono perdida para comprar essa mesma lata. Ou o par de calças amarelas que nunca caiu em nenhum chão, nem de uma sala, nem de um quarto, nada. Ainda assim, os comboios permanecem bondosos. A eles nenhum rancor guardo.
Aborrecem-me apenas os bichos alados a que chamamos lembranças, esses que são atraídos pelo ranço dos sentimentos. É por isso que escrevo. Para que as lembranças sejam apenas isso, percam as asas e fiquem onde as quisermos. Para que a sensação de tristeza deixe de o ser e se torne também ela numa recordação dela própria.

domingo, 27 de maio de 2012

Hotel na areia 13

Dói-me. Eu quero reter a imagem dessa tarde feliz, a tarde que se seguira à manhã passada na cama, a cama onde eu lhe pudera sentir na boca o sabor da manteiga das torradas do pequeno-almoço. Tal como essa tarde luminosa e fresca se sobrepusera à manhã de chuva, eu quero que a imagem dessa tarde se sobreponha à lembrança dessas quentes noites lisboetas em que eu sonhava pelas janelas abertas. Angustiava.
Nessa tarde fresca e feliz, ele falava muito, eu falava muito. Éramos bonitos juntos, todo aquele dia era beleza. Ele vestira um pólo branco de mangas curtas eu não deixara de reparar como, com os óculos escuros da moda e o sorriso branco e saudável, parecia saído de um anúncio. Todo aquele dia era beleza.
Mas se ele falava muito, não ousara ainda dizer o que queria dizer. Limitava-se a sentir e a satisfazer-se com o que sentia, com o meu sorriso e as minhas palavras saídas de uma banheira solitária.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Hotel na areia 12

Eu achava que estava de alguma forma a ser ingrato. Quem conduzia aquele automóvel era o homem de pele morena que ao fim de alguns encontros - cafés, cinemas, exposições, copos - me presenteara com um retrato meu feito a carvão. Era a sua tentativa de me impressionar, que eu achava adorável, e de me transmitir algo.
Agora eu sentia que estava a ser ingrato por a ternura que sentira para com o retrato só me parecera possível numa tarde em que céu estava repleto de farrapos brancos de nuvem. Fora isso que ele, o condutor, me pedira? Era isso que ele me pedia naquele momento, ali naquele carro? Eu dizia para mim mesmo que não sabia e procurava focar-me no sorriso dele, no mar, no guia, no falatório.
Não me pergunte se fora isso que ele me pedira. Você sabe. Mas que fazer quando o nosso pensamento - com vontade próprio - foge para outro sítios. Aquela tarde no automóvel não garantira nada. Foi bom parar em várias praias e povoações pitorescas, havia uma imagem de felicidade em tudo aquilo. Às tantas parámos junto a uma falésia e ficámos parados a olhar o mar, o vento fustigando-nos. Sei que ele se chegou a mim, sei que lhe passei o braço à volta do ombro. Sei que me sentia pequeno naquela imensidão e agarrava-me a ele como que tentando agarrar-me a algo cujas reminiscências preenchiam aquela tarde.
Que fazer quando o pensamento, motivado por sentimentos ziguezagueantes, toma a direita quando queríamos a esquerda. O mesmo pensamento que em Lisboa saía pelas janelas abertas do apartamentos nas noites quentes de fim da Primavera.
Vejo a sala escura, a luz do luar entrando pelas janelas, desenhando trapézios esbranquiçados no chão. Eu no sofá, deitado, olhava os quadrados abertos para a rua e queria sair por eles. O homem dos calções de banho vermelhos dormia no quarto, eu ouvia-lhe a respiração. Esse som era um lembrete angustiante. Porque o pensamento saía pelas janelas e queria saltar pelos telhados até ao outro lado da cidade.
O mesmo pensamento.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Hotel na areia 11

Algo dói em mim quando penso nessa tarde na costa do granito rosa. Tudo tinha um ar lavado devido à forte chuva que caíra. O céu não estava limpo, apenas o suficiente para nos lembrar que sempre era Verão. O Verão mais húmido de sempre, sobretudo quando tínhamos deixado uma cidade que abafava e, em nossa casa, nem uma brisa entrava pelas janelas abertas. A tarde estava luminosa e fresca. Ele conduzia (algo que nos dias anteriores me deixava desconfortável) e levava parte da cara escondida pelos óculos de sol da moda. Conversava muito, todo bem disposto, eu olhava para ele e só via os dentes brancos felizes e os óculos de sol que faiscavam naquela tarde luminosa depois da chuva. Eu não podia deixar de sorrir perante esse quadro. Naquele automóvel, a felicidade era um corpo. A estrada costeira serpenteava à nossa frente, o mar acompanhava-nos pela direita e eu sorria, enquanto discutíamos as informações do guia em grande galhofa.
Eu pensava em como tínhamos chegado ali - como é que de um encontro num cinema das Avenidas Novas fôramos parar a uma estrada costeira na Bretanha.
Já referi que durante alguns dias após o primeiro encontro não o voltei a ver. Já percebeu que todo eu era embevecimento, mas tive medo de forçar novo encontro através das tais amizades comuns. Ainda divaguei acerca dele junto de um amigo ou dois, mas estava disposto a render-me ao ritmo dos acasos e dos desencontros; não contava vê-lo, ainda que gostasse da ideia.
Creio que passaram duas semanas até que encontrei na rua uma amiga que dele vinha acompanhado. Sei que me juntei a eles e no final desse dia o estudante de Desenho me deu o número, dizendo que gostava me voltar a ver.
Eu bem disse que o destino fora comigo complacente.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Hotel na areia 10

No dia seguinte, quando acordámos, chovia. Era uma chuva compacta e interminável que mal deixava ver a areia da praia do outro lado da rua. Naquela manhã não haveria praia.
Eu acordei primeiro - eu acordava sempre primeiro, evitando ser surpreendido. Quando me apercebi da chuva, cheguei-me a ele, ao seu corpo quente. O quarto tinha pouca claridade, era tudo sombra. A calma era tremenda, mas apetecível. Havia o burburinho permanente da chuva e, para além dele, alguns passos no corredor ou a água que começava a correr de uma torneira noutro quarto.
O quarto, a chuva e nós na cama.
Aquela não era a primeira manhã de chuva que partilhávamos na cama. Não, a primeira fora mesmo há já o que parecia ser uma eternidade.
Tinha sido algum tempo depois de nos conhecermos. Ele vivia numa casa partilhada nessa altura e lembro-me que de manhã o quarto estava cheio de uma luz cinzenta porque chovia do mesmo modo implacável. Mas não havia ali qualquer tristeza. Lembro-me de ele ter desaparecido para a cozinha, onde preparou o pequeno-almoço. Eu saí do quarto para ir à casa de banho, voltei e enfiei-me na cama, olhando a janela e ouvindo os ruídos de loiça a ser colocada numa bancada e torradeiras que estalavam. Porque a casa era partilhada e o nosso acontecimento recente, nesse dia ele trouxe-me o pequeno-almoço ao quarto. (Algum tempo depois passaria a comer as torradas na cozinha.) Também por ser recente ele tentava impressionar-me com aquele gesto. Não que ele precisasse de fazer o que fosse para me impressionar, bastava-me vê-lo entrar pela porta do quarto iluminado por uma luz chuvosa. E ele entrou, com um tabuleiro cheio de comida.
Fomos comendo e ficando por ali. E como tudo era tão novo e tão bonito... E como estava tanto frio e chovia tanto, mas não havia problema nenhum. Tínhamo-nos um ao outro e naquele quarto de casa partilhada, isso bastava.
Naquela manhã chuvosa de praia, depois de ele acordar deixámo-nos ficar na cama a conversar e a sorrir. Descemos para o pequeno-almoço e, depois disso, voltámos para o quartinho. Depois do almoço parou de chover. O ar estava fresco e o cheiro a mar era particularmente forte. Metemo-nos no carro e fomos explorar a costa de granito rosa, de guia na mão, máquina fotográfica e tudo.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Hotel na areia 9

Irreversível. Tão irreversível como uma noite de Março. Naquela escuridão diurna, o homem moreno que tinha uma seara de pêlos no peito e outra no baixo-ventre pedia de mim apenas uma coisa. Ele não o dizia. Já o dissera. Fora mesmo com isso que nos levara até ali. Antes de sairmos de Lisboa tinha dito:
- O que nós precisamos é de uma férias longe de tudo. Uns dias, apenas.
Estas frases eram ditas imediatamente após mais uma cena de gritaria e choro, que naqueles dias tendiam a repetir-se. Por esses dias, o que me parecia é que ele não se calava nunca. Falava até muito para alguém que, chegado a um areal bretão, faria largo uso do silêncio.
- Férias? Para quê?
Instalados junto à praia, ele limitava-se a falar de banalidades, de factos da vila e da região que coligira na sua pesquisa e, de vez em quando, recordava alguma coisa do nosso passado. Mas pouco. Eu percebia que ele fazia aquilo com um propósito - falando pouco, limitava-se a existir junto de mim. Era uma estratégia nova para que eu fizesse o que ele queria. Ali, isolados do mundo, eu deveria perceber o que havia de tão importante e vital entre nós. Eu acedera a fazer a viagem, no fim de contas.
Quando fazia as malas em Lisboa, desejava ardentemente que aquelas fossem as malas que eu preparava para a minha saída daquela - da nossa - casa.
- Estive a ver sítios. Seria como um retiro. - Ele estava sentado no sofá, a cabeça nas mãos, os olhos gastos de chorar, enquanto ao caminhava furiosamente de um lado para o outro. Furioso e sem saber o que fazer. Ou sem coragem para o fazer.
O que sei é que dias depois metíamos as malinhas no carro e partíamos para Saint-Michel.
Ele só queria que eu o amasse e eu limitara-me enfiar uns pares de calças num saco de viagem.

domingo, 1 de abril de 2012

Hotel na areia 8

Num desses dias, numa dessas vezes em que eu me desfazia na banheira e ele cirandava despido pelo quarto, não resisti. O silêncio no quarto era quase total, ouvia-se o murmúrio do mar. Noutro quarto alguém fechou uma gaveta com força.
Ele chegou-se à porta da casa de banho e, ao fixarmos o olhar um no outro, encostou-se com os braços cruzados. Sorri-lhe, não resisti. Ele sorriu-me.
A imagem - a ilusão - era quase perfeita. Ele a sorrir-me, eu numa banheira a sorrir-lhe, uma casa de banho de quarto de hotel, ele nu e lustroso a fixar-me. A luz do compartimento era esbranquiçada como a daquela pastelaria do centro de Lisboa onde primeiro tínhamos falado, onde primeiro nos tínhamos olhado e sorrido. Sim. Não resisti. Pois.
Ele entrou no compartimento e aproximou-se do espelho, procurando a sua imagem na superfície embaciada. As várias horas de praia começavam a escurecer-lhe a pele, a marca dos calções vermelhos era já perfeitamente visível e, do sítio onde estava, eu via-lhe as nádegas redondas e bonitas. Não resisti.
- Tenho pensado na noite em que nos conhecemos. - A voz saiu-me rouca e pouco clara. Ele não se virou. - Aliás, tenho pensado muito em toda essa altura.
Tinha sido a altura abençoada. E eu acabava de cometer uma falta grave - eu sabia disso. Mas não tinha resistido e agora não podia voltar atrás. A verdade é que a casa de banho oferecera naquele momento um espaço de ilusão. Sei que me convenci de como o rumor das ondas que vinham bater à praia era benigno e o cheiro da humidade das madeiras e dos atoalhados era um aroma feliz de paz e felicidade doméstica.
Ele virou-se e olhou-me sério. Os olhos iluminaram-se de novo num sorriso. Aproximou-se da banheira, baixou-se apoiando um joelho no chão. Os nossos rostos ficaram próximos e ele envolveu-me nos braços.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Hotel na areia 7

Pensar naquela noite de Março só aumentava a minha tristeza e a minha raiva contra aquela praia estúpida.
Porque naquela noite distante, ao passar por um jardim perfumado, eu já sabia que todo eu queria ser dele. Com uma certeza descabida e ingénua. Há um livro a que gosto de regressar, um que se passa na Rússia rural e onde uma rapariga se apaixona pela primeira vez por um desconhecido acabado de chegar. Ao chegar a casa naquela noite, eu era essa rapariga, com o peito cheio e a cabeça presa numa só imagem. Confesso que desejei ter o cenário romântico de uma grande casa de campo perdida na noite para condizer com os meus sentimentos. Poderia então sentar-me e escrever uma longa carta, tal como essa rapariga tinha feito...
Não, não escrevi carta nenhuma. Foi tudo muito mais banal. Aliás, ainda fiquei alguns dias sem o voltar a ver e pensei que poderia mesmo perder aquele encantamento sonhador em que ele me deixara. Mas o destino foi complacente com as minhas fantasias.

Eu recordava tudo isso na banheira para onde mergulhava depois da praia e de ver os calções de banho vermelhos caírem no chão do quarto. Deixava-me ficar longamente na água fumegante, as pontas dos dedos encarquilhadas, pensando em cinemas de reposição, pastelarias esbranquiçadas e jardins perfumados. Nesses momentos, a calma no quarto era absoluta. Ele, que estava sempre a tentar iniciar conversas, ficava, depois da praia, estendido na cama e bastante calado. Eu sabia. Só me apetecia deixar-me escorregar até ficar com a cabeça submersa (cheguei a tentá-lo, mas sem coragem para prosseguir - era um gesto estúpido). Eu sabia, por saber só me apetecia que me escorresse uma lágrima cara abaixo para que esse conhecimento ficasse bem expresso. Mas escorria apenas a água quente do banho.
Da banheira não o via, mas conseguia imaginá-lo na cama, completamente relaxado. Conseguia imaginá-lo a sair da cama e caminhar, toda a pele morena e todos os pêlos a descoberto, até à janela. Se fosse um fumador, estou certo de que sacaria de um cigarro e o acenderia com ruído. Confiante no progresso que acabava de ocorrer.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Hotel na areia 6

O curto caminho que era feito entre a praia e o hotel e consumado no quarto era uma reminiscência de um passado que cada vez me parecia mais distante. Até o quarto sempre escurecido, com aquelas cortinas amareladas, aumentava a sensação de memória que se desvanecia, ainda que ali estivéssemos, juntos, procurando desesperadamente uma ligação, enquanto o mar rumorejava do outro lado dos vidros.
Eu recordava o passado distante, um momento de Primavera - creio que num mês de Março - em que as noites frias estavam saturadas do cheiro adocicado das flores que desabrochavam. O perfume dessas noites de Março. Lembrava-me de o ter conhecido numa dessas noites, quando os olhos escuros e redondos me tinham sido apresentados por alguém - um amigo - à saída do cinema. Acho que me esqueci do nome desse amigo, bem como de todos os que estavam lá nessa noite.
Mas sei que fomos todos a um café do outro lado da rua. Era numa de praça de Lisboa, àquela hora deserta, só o ruído das nossas vozes e dos nossos risos ecoando. Não sei se me lembro do nome do café onde nos sentámos todos em redor de mesas. Sei que o moreno bem-parecido estava sentado à minha frente e parecia ter deixado de fazer a barba há duas semanas. Era uma barba escura, ainda pouco densa, mas ao meu olhar deslumbrado, tinha o seu quê de herói romântico, de revolucionário moderno. Era difícil tentar não fixá-lo com demora. O meu desejo era absorver todos os pormenores - o nariz arredondado, os dentes direitos de um branco impecável - à luz branca e mortiça daquele café das Avenidas Novas.
Por alguns momentos, ainda tentei seguir as conversas do resto do grupo, trocando apenas uns olhares com aquele que alguém (não me lembro do nome, nem quero saber) identificou como sendo estudante de Desenho. Era um dos artistas do grupo, decididamente o mais encantador. Porque ele próprio decidiu encetar uma conversa comigo, realizando desse modo o meu outro desejo - falar-lhe. Percebi então que a sua voz tinha uma sonoridade particular, fazia lembrar alguém que tivesse acabado de acordar. Continuava o encanto.
Sei que nessa noite, com a excitação, decidi caminhar até casa. Havia uma aragem fresca. Passei por um jardim de onde se desprendia o odor saturado das flores que durante o dia maceravam ao sol. Daí que aquele homem, que no quarto se livrava dos calções de banho vermelhos, tivesse sempre de cheirar a flores numa noite de Primavera, e não à humidade marítima. E por isso estava tanta coisa errada no mundo.

Hotel na areia 5

Eu olhava para aquele homem e tentava encontrar-me nele. Juro que tentava. No fundo, aqueles dias não foram mais do que isso - uma tentativa de reencontro.
Irritava-me comigo mesmo por olhar para ele e não me encontrar. No entanto, ele ali estava. Ainda.
Ainda.
Apesar de uma força destrutiva que se interpusera entre nós. Hoje não tenho outro nome para isso. Na altura, confesso que tive. E também por ter, aqueles dias na praia foram um tormento. Para mim e para ele.
Eu sabia como era o sorriso dele, um sorriso cheio, daqueles que até fazem covinhas. Fora esse o sorriso. O sorriso e os olhos tão redondos que até ele me levaram. Nesses dias cinzentos da costa bretã, eu lembrava esse sorriso e esses olhos - lembro ainda.
A nossa vida tinha tudo quando um homem que usava calções de banho azuis apareceu. Odeio-o, como odeio muita coisa nesta vida, e sei que o ódio significa que há ainda muito por resolver.
É que eu tinha uma vida, essa tal vida que tinha tudo. A nossa vida não era perfeita, mas era completa, estávamos no momento certo, um momento que nessa condição de certo se prolongava indefinidamente. Os olhos e o sorriso das covinhas eram meus. Havia uma casinha. Havia tudo o que queríamos. Um trabalho demorado que progredia constantemente.
Era com tudo isso que eu me confrontava naquele quarto de hotel. Anos e anos metidos num quartinho. Todos esses anos e ele.
Ele fixava-me longamente e eu tentava evitar o seu olhar. Aliás, tentava evitá-lo de todo. Nos dois primeiros dias que se seguiram à nossa chegada, eu tentava sair da cama cedo. Era uma tarefa difícil quando tudo era tão húmido e triste e na cama havia um corpo quente. Mas fazia esse esforço, com medo de passar tempo com ele. (É verdade, receio o confronto.) No entanto, a terra era pequena e não havia muito que fazer. Quanto a pegar no carro, não tinha coragem - não tinha coragem de o deixar sozinho. Por isso, ao fim desses dois dias, passei a deixar-me estar na cama e a seguir com ele para a praia, livro na mão e tronco coberto.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Hotel na areia 4

Não se engane. O gesto de estender a mão para a mão húmida, o caminho que fazíamos juntos até ao quarto e o que nele acontecia nalguns daquelas manhãs de praia eram pequenas ilusões, de significado limitado.
É que quando via os calções de banho vermelhos caminhando pela praia e lhes adivinhava o conteúdo, havia uma outra imagem que me vinha à cabeça. E essa eu não conseguia mesmo impedir; a de um outro corpo de pele mais clara e que eu sabia (por ter visto uma vez) que usava uns calções de banho azul-céu.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Hotel na areia 3

Aqueles momentos na praia estavam, apesar de tudo, repletos de um grande erotismo. Pelo menos, eu sentia-os como tal. Talvez apenas eu.
Enquanto eu permanecia meio vestido na toalha, com os olhos postos num livro ou na linha da água, ele entregava-se aos prazeres da água fria e salgada.
Ele era bonito, tenho de o dizer. Tinha uma cara agradável, os olhos grandes que primeiro me tinham cativado. Uns olhos que sorriam com a boca. Ou que antes tinham sorrido com a boca. Naquela praia eram apenas grande e com círculos negros em redor. É verdade.
Mas continuava bonito e o seu corpo bem feito. E na praia usava sempre uns calções de banho vermelhos e justos, o que - em conjunto com a sua pele morena - criava um verdadeiro regalo para a vista naquele areal. O quadro era de uma beleza bastante sensual.
Eu ficava a observá-lo enquanto ele se afastava para ir até ao mar, o conteúdo tonificado dos calções de banho caminhando em toda a sua perfeição. Eu queria reter aquela imagem, se possível pará-la para meu deleite pessoal. Se possível, com o ruído das ondinhas que vinham bater contra a praia. Se possível.
Também porque aquela beleza evocava tanta coisa e também elas belas.
Depois do mar, voltava para junto de mim e aí podia vê-lo novamente caminhar, agora na minha direcção. Os calções vermelhos colados à pele morena. Acima dos calções, uma pequena seara de pêlos que ressurgia depois para cobrir levemente o peito.
Aí, eu tinha de sorrir, mesmo que não quisesse. E sorria-lhe enquanto ele se deitava ao meu lado coberto de gotas.
Eu sabia que nada daquilo era encenado. Antes fosse. Saber que tanta beleza, tanta simplicidade, tanto corpo, eram reais - naquela praia de desespero - entristecia-me. Sobretudo que eles de mim pediam apenas uma coisa.
Há muitas coisas que não sei, que nunca saberei explicar.

Quando saímos da praia, não resistia. Caminhávamos lado a lado e a minha mão estendia-se para alcançar a dele. E era assim que íamos até ao hotel, ao nosso quartinho. Juntos.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Hotel na areia 2

Quase todos os dias, descíamos à praia e, na maioria das vezes, eu não saía da toalha. Todo aquele cinzento arrepiava-me. Mas ele não. Ia sempre até ao mar, parecia ser o momento em que vivia de novo e em pleno. Andava por lá feito cão, todo contente, e o meu pesar não desaparecia.
Aquela visão feliz fazia-me sorrir e eu tentava, juro que tentava, repescar uma ligação entre aquele sorriso e um sorriso antigo, um sorriso que também fora produto meu. O aperto no peito que aquele feliz momento canino me provocava.

Na verdade, não parecia que houvesse algo mais para sentir do que apertos no peito. Como aquele da chegada, mas mesmo esse fora diferente. Estando o hotel praticamente vago, fora fácil conseguir um quarto virado para a frente, para a baía - os nossos dias passavam-se irremediavelmente nessa terrível baía, dentro dela, olhando para ela, tudo nela.
O quarto não era muito grande, mas tinha a sua graça. A mobília vinha claramente do passado e de todos os objectos e tecidos se desprendiam o odor da humidade. Aproximei-me da janela e olhei para o exterior através dos vidros marcados pelo sal marítimo; por trás de mim, ouvi-o a mexer em malas, a abrir gavetas e armários, numa fúria arrumadora. Não me sentia capaz de o olhar e todo aquele afã começava a causar-me uma pequena raiva. Sentia-me prisioneiro e a minha raiva parecia querer forçar umas lágrimas. Antes que isso acontecesse, abandonei o quarto sem dizer nada. Sem sequer o olhar nos olhos.

Não, o aperto à beira-mar era diferente. Perante aquela alegria marinha, eu sorria triste.