Eu achava que estava de alguma forma a ser ingrato. Quem conduzia aquele automóvel era o homem de pele morena que ao fim de alguns encontros - cafés, cinemas, exposições, copos - me presenteara com um retrato meu feito a carvão. Era a sua tentativa de me impressionar, que eu achava adorável, e de me transmitir algo.
Agora eu sentia que estava a ser ingrato por a ternura que sentira para com o retrato só me parecera possível numa tarde em que céu estava repleto de farrapos brancos de nuvem. Fora isso que ele, o condutor, me pedira? Era isso que ele me pedia naquele momento, ali naquele carro? Eu dizia para mim mesmo que não sabia e procurava focar-me no sorriso dele, no mar, no guia, no falatório.
Não me pergunte se fora isso que ele me pedira. Você sabe. Mas que fazer quando o nosso pensamento - com vontade próprio - foge para outro sítios. Aquela tarde no automóvel não garantira nada. Foi bom parar em várias praias e povoações pitorescas, havia uma imagem de felicidade em tudo aquilo. Às tantas parámos junto a uma falésia e ficámos parados a olhar o mar, o vento fustigando-nos. Sei que ele se chegou a mim, sei que lhe passei o braço à volta do ombro. Sei que me sentia pequeno naquela imensidão e agarrava-me a ele como que tentando agarrar-me a algo cujas reminiscências preenchiam aquela tarde.
Que fazer quando o pensamento, motivado por sentimentos ziguezagueantes, toma a direita quando queríamos a esquerda. O mesmo pensamento que em Lisboa saía pelas janelas abertas do apartamentos nas noites quentes de fim da Primavera.
Vejo a sala escura, a luz do luar entrando pelas janelas, desenhando trapézios esbranquiçados no chão. Eu no sofá, deitado, olhava os quadrados abertos para a rua e queria sair por eles. O homem dos calções de banho vermelhos dormia no quarto, eu ouvia-lhe a respiração. Esse som era um lembrete angustiante. Porque o pensamento saía pelas janelas e queria saltar pelos telhados até ao outro lado da cidade.
O mesmo pensamento.
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