sábado, 1 de setembro de 2012

Um par de calças amarelas

Na outra noite, ao descer uma rua na zona do Bairro Alto, vi um par de calças amarelas pendurado num estendal. Esse par lembrou-me um outro, um que eu desejara ver no chão de uma sala, de um quarto, do que fosse. Lembro-me delas, das calças, porque foi o que primeiro vi, o que primeiro me chamou a atenção. Eu podia mesmo dizer que tinha sido um par de calças que a mim se dirigira e perguntara:
- Já chegaste há muito tempo? - Se dissesse isso não estaria a fugir grandemente à realidade.
Vai-me dizer que falo sempre de memórias e de lembranças, vai-me dizer que escrevo sempre sobre o mesmo. Eu sei. É possível que seja verdade. Mas falo-lhe das lembranças por serem o que ficam, por serem esses insectos voadores que esvoaçam em torno do ranço dos sentimentos. São esses pequenos seres com asas que me levam a escrever, admito-o.
Lembro-me bem porque a manhã desse dia fora especialmente triste e a tarde ameaçava ser uma continuação dessa tristeza, pois estávamos no pino do Verão (ainda se usa essa expressão?), a pior altura do ano para alguém se meter em aventuras, e a avenida era apenas um murmúrio e uma brisa.
Se o par de calças que aquele outro num estendal me lembrara tivesse ficado algures numa interrupção da circulação ferroviária suburbana, a avenida teria continuado apenas a ser murmúrio e brisa. Mas não. Os maquinistas estavam concertados para que essas calças se atravessassem no meu caminho e o seu esquema cromático não deixasse de me perturbar. Tomei esse sacrifício para que os passageiros dos comboios desse dia chegassem onde tivessem de chegar.
Foi um efeito notável, o causado por essas calças. Não por essa primeira visão, mas pelo rendilhado de sentimentos em que me lançaram. Havia algo de imperceptível no dono dessas calças e odiei-me assim que reconheci essa imperceptibilidade e o que nela me atraía.
Porque eu queria, deixei. Deixei que a avenida e todas as outras artérias da cidade deixassem de ser murmúrio e passassem a ser ruído. E ainda que nem sempre compreendesse esse ruído, eu desejava-o, como apenas o desejo sabe ser. Porque eu estive a tempo de parar isso, eu sei que estive. Mas não quis. Esse meu desejo por amarelo (por coincidência uma das minhas cores preferidas) não quis que eu parasse enquanto era tempo.
Assim condenei a minha mão a controlar-se cada vez que queria alcançar a dele. Doía-me o desejo porque o ruído com que ele enchia as ruas, os jardins e os cafés continuava imperceptível. Eu tentava captar coisas bonitas por entre o ruído. Julguei ouvir uma ou duas. E depois quis julgar ouvir mais. Eu julgava julgar. Pois apercebi-me de que, ao abrir uma lata de atum, já não podia voltar a fechar os meus sentimentos dentro de mim, tal como já não poderia voltar a fechar o atum oleoso dentro da lata.
Como julgava ouvir e julgava julgar (não vou questionar a veracidade dessas captações), construí pequenas imagens de partilha e murmúrio. Sim, construí. Diga-me, nunca construiu? Pois.
Há muita coisa que eu não sei e é com alguma frequência que as minhas tentativas de perceber o que não sei saem goradas. Não basta saber que é amarelo. Tal como uma busca ziguezagueante por um elemento biográfico de um funcionário superior dos caminhos-de-ferro (aqueles que o meu coração poupara num determinado dia de Verão) dera muitas vezes em nada, as minhas tentativas para perscrutar entre o amarelo foram infrutíferas. Tinha apenas pistas, incoerentes, incompletas, inimigas. E eu só queria saber porque é que isso fazia delas tão apetecíveis. Eu sei. Eu sei. Eu sei. Mordo o lábio para controlar o choro. Eu sei.
Eu sei.
Não, não é isso. Se uma lágrima me quer galgar a face é porque me comove o mistério das coisas. Apesar de tudo, eu acredito na bondade dos comboios; muitas vezes eles me levaram a momentos que brilhavam de inocência e felicidade. Acredito e é por acreditar que não percebo como o murmúrio passa a ruído e este a silêncio.
Com a mesma facilidade com que tinha descido de um comboio que respeitava escrupulosamente o horário e tomara conta de mim, o amarelo não fez caso dos meus anseios e partiu. Antes de o saber, eu já o sabia. Sabia-o desde que ouvira o ruído impenetrável. Mas o amarelo sendo uma cor tão bonita e por isso enganadora, eu precisava de saber, mesmo já o sabendo. Só para saber. E poder dizer à minha mão iludida "vês?".
Como já sabia, lembrei-me de uma canção e fiz como ela dizia, fazendo com que fossemos a um jardim. Nada nessa escolha foi inocente: para além de ser um jardim como a canção sugeria, era um que eu sabia poder facilmente cobrir com melhores recordações por ser o meu habitual ponto de encontro com uma amiga nos fins de tarde do início desse Verão que começara abençoado e caminhava agora para o desastre.
Nesse jardim, já nem apareceram as calças amarelas. Ele tinha trazido outras. Foi então que me apercebi de como aquela cena de jardim era terrivelmente semelhante a uma outra, aquela em que Onegin vem ao encontro de Tatyana depois de esta se lhe ter declarado. Quis rir-me como essa ideia. Tanto nós como eles estávamos num jardim. E tudo o que havia de mais blasé e displicente em Onegin, havia nele. Tal como havia em mim o mesmo temor que havia em Tatyana que, coitada, ainda foi obrigada a dançar com ele depois de ele a rejeitar.
Não alcançando ele a eloquência de Onegin, a cena perdeu em qualidade, mas o resultado foi o mesmo. Muito laconicamente me foi anunciado que aquele amarelo não seria meu e, nesse momento, todas as ruas, jardins e cafés se encheram de um ruído estridente que eu queria apagar. Porque o ruído, como eu imaginava, era enganador e estava agora por todo o lado, troçando de mim e das minhas construções em amarelo.
É por isso que me comovo e mordo o lábio. Porque de tardes vazias e silenciosas facilmente se fazem longas horas de ruído e destas rapidamente apenas ficam lembranças e frustrações. Como a mancha de óleo que escorreu da lata de atum para o pano. Ou a hora de sono perdida para comprar essa mesma lata. Ou o par de calças amarelas que nunca caiu em nenhum chão, nem de uma sala, nem de um quarto, nada. Ainda assim, os comboios permanecem bondosos. A eles nenhum rancor guardo.
Aborrecem-me apenas os bichos alados a que chamamos lembranças, esses que são atraídos pelo ranço dos sentimentos. É por isso que escrevo. Para que as lembranças sejam apenas isso, percam as asas e fiquem onde as quisermos. Para que a sensação de tristeza deixe de o ser e se torne também ela numa recordação dela própria.

1 comentário:

Luísa A. disse...

Há muitas coisas neste texto que me deixam a tremer. Mas vamos por ordem.
Logo no começo criaste um momento engraçado. Porque quando li sobre o par de calças sorri (com familiaridade e não repetição). Depois de ler vários posts houve uma certa empatia automática com o narrador. Mas não só. Também com objecto ganhar vida representando a influência da outra personagem. É uma coisa que adoro que faças.
E como que adivinhando essa familiaridade dirigiste-te ao leitor. Não vou mentir, esbugalhei os olhos por me sentir apanhada, ainda que da minha parte não houvesse nenhuma crítica quanto à escrita sobre recordações e infortúnios de apaixonados.

Depois começaram as metáforas, ou melhor, a maneira hábil como usas cenários para integrar a história. É avassalador. Não sei como é tão fácil para ti pegar em tanta coisa rotineira para expor sentimentos e de repente me fazer dar mais atenção a todas as pequenas coisas que me rodeiam e presenciam as minhas próprias histórias.

Mas o momento em que o meu coração parou foi mesmo aqui: "Eu tentava captar coisas bonitas por entre o ruído. Julguei ouvir uma ou duas. E depois quis julgar ouvir mais. Eu julgava julgar. Pois apercebi-me de que, ao abrir uma lata de atum, já não podia voltar a fechar os meus sentimentos dentro de mim, tal como já não poderia voltar a fechar o atum oleoso dentro da lata."

Eu já estava apanhada desde o início do parágrafo, mas aqui quase me senti exposta. Porque esta não é a minha história mas este sentimento já foi meu. As verdades que constatas de maneiras tão... poéticas? Harmoniosas? Visuais? Elas ganham novo peso. E se já antes estava ansiosa pelo inevitável sofrimento que se seguiria, aqui senti mesmo a angústia.

Há uma coisa que me deixa apaixonada pelo narrador desta e outras histórias que é a constante curiosidade. Mesmo quando o instinto lhes diz que vão sair magoados, não deixam de dar o passo em frente e arriscar. Por isso fiquei de lágrimas nos olhos com este outro brilhante momento: "Antes de o saber, eu já o sabia. Sabia-o desde que ouvira o ruído impenetrável. Mas o amarelo sendo uma cor tão bonita e por isso enganadora, eu precisava de saber, mesmo já o sabendo. Só para saber. E poder dizer à minha mão iludida "vês?"."

Podem chamar a isto o que quiserem. Podem advertir contra estas mágoas supostamente desnecessárias. Até podem chamar-lhe um apaixonado crónico, sempre pronto a deixar-se levar por mais uma história que desde o início brilha com sinais de aviso a dizer "dá meia volta e vai embora". Mas para mim é corajoso. É louvável. E, sejamos sinceros, dá azo a óptimas histórias ;)

A comparação com Onegin só contribuiu para a minha tristeza, porque essa ópera já que causou muitas lágrimas. E adorei o toque crítico que geralmente marca a tua escrita de uma forma cómica e sarcástica, como o facto de a cena não ter a mesma qualidade mas o mesmo resultado. Mas o que me liga mesmo a esta história são momentos como o seguinte. Em que as calças amarelas não voltam, embora volte o dono para anunciar o fatídico destino de um chão sem elas.

A muito feliz referência aos comboios só me deixou com ainda maior simpatia pela situação. Mais uma vez o narrador revela-se de uma inocência romântica invejável que contrasta com a sua perspicácia racional.

Mas o fim foi mesmo explosivo. O melhor fim possível. Porque já sofremos decepções torna-se impossível não desejar que o sofrimento da personagem acabe quando a história acaba.
Este texto é uma espectacular homenagem àquelas recordações dolorosas, que pesam, que pomos no papel para não as carregarmos mais connosco. E é isso que no fim fico a desejar ao narrador. Que ele sinta o alívio de já saber, de ter partilhado e comece a sarar.
E assim dou por mim, mais uma vez, a criar amizades com personagens fictícias.

Continua. Sempre.