quinta-feira, 15 de março de 2012

Hotel na areia 6

O curto caminho que era feito entre a praia e o hotel e consumado no quarto era uma reminiscência de um passado que cada vez me parecia mais distante. Até o quarto sempre escurecido, com aquelas cortinas amareladas, aumentava a sensação de memória que se desvanecia, ainda que ali estivéssemos, juntos, procurando desesperadamente uma ligação, enquanto o mar rumorejava do outro lado dos vidros.
Eu recordava o passado distante, um momento de Primavera - creio que num mês de Março - em que as noites frias estavam saturadas do cheiro adocicado das flores que desabrochavam. O perfume dessas noites de Março. Lembrava-me de o ter conhecido numa dessas noites, quando os olhos escuros e redondos me tinham sido apresentados por alguém - um amigo - à saída do cinema. Acho que me esqueci do nome desse amigo, bem como de todos os que estavam lá nessa noite.
Mas sei que fomos todos a um café do outro lado da rua. Era numa de praça de Lisboa, àquela hora deserta, só o ruído das nossas vozes e dos nossos risos ecoando. Não sei se me lembro do nome do café onde nos sentámos todos em redor de mesas. Sei que o moreno bem-parecido estava sentado à minha frente e parecia ter deixado de fazer a barba há duas semanas. Era uma barba escura, ainda pouco densa, mas ao meu olhar deslumbrado, tinha o seu quê de herói romântico, de revolucionário moderno. Era difícil tentar não fixá-lo com demora. O meu desejo era absorver todos os pormenores - o nariz arredondado, os dentes direitos de um branco impecável - à luz branca e mortiça daquele café das Avenidas Novas.
Por alguns momentos, ainda tentei seguir as conversas do resto do grupo, trocando apenas uns olhares com aquele que alguém (não me lembro do nome, nem quero saber) identificou como sendo estudante de Desenho. Era um dos artistas do grupo, decididamente o mais encantador. Porque ele próprio decidiu encetar uma conversa comigo, realizando desse modo o meu outro desejo - falar-lhe. Percebi então que a sua voz tinha uma sonoridade particular, fazia lembrar alguém que tivesse acabado de acordar. Continuava o encanto.
Sei que nessa noite, com a excitação, decidi caminhar até casa. Havia uma aragem fresca. Passei por um jardim de onde se desprendia o odor saturado das flores que durante o dia maceravam ao sol. Daí que aquele homem, que no quarto se livrava dos calções de banho vermelhos, tivesse sempre de cheirar a flores numa noite de Primavera, e não à humidade marítima. E por isso estava tanta coisa errada no mundo.

1 comentário:

Ana disse...

Honestamente, lendo de rajada, não sei que faça. Se me abrace ao computador e chore um pouco, se persiga o escritor e lhe bata com força. Vou optar pela segunda porque acho que mais facilmente me vai livrar deste peso insistente ou, pelo menos, vou sentir-me vingada ao infligir alguma dor de volta. A comparação do quarto com a relação ia-me matando por ser tão brilhante. Olhei para trás e pensei: como não pensei nisto antes, claro! E depois a descrição do primeiro encontro.

Esta paixão forçada em que me vi pelos calções vermelhos está a piorar toda a avalanche de sentimentos na leitura. Cada vez simpatizo mais com o narrador, apesar de todo o seu desencantamento. A voz de quem acabou de acordar? O cheiro a flores numa noite de primavera? Quantos mais detalhes extraordinários conseguem ser postos aqui para me matar lentamente?