segunda-feira, 26 de maio de 2014

Gracinha

Terei de escrever sobre Gracinha. Gracinha e os seus caracóis loiros, os seus vestidos brancos e os seus chapéus de palha. Gracinha que descobre enfim que o amor é espesso e complicado. Complicado porque espesso. Gracinha que passava pelos dias com invulgar leveza.
Foi Carlota, a sua amiga, a primeira pessoa a quem confiou os seus anseios. Na mesma tarde em que Gracinha ouvirá depois um cavalo que se aproxima. Gonçalo Bermudes que finalmente chegará. Como parece tudo tão perfeito a Gracinha quando está com Gonçalo. Ao final da tarde, passearão juntos pelo parque da quinta. Ainda que não falem muito nesses instantes repletos de doçura, para Gracinha estará tudo bem. Porque Gonçalo ali está com ela. E aí os seus anseios parecerão tolos e toda a conversação com Carlota poderia ter ficado pelos momentos em que ambas riram e os caracóis loiros de Gracinha foram agitados com o vigor do riso.

Fantasia estival para N. - 5

Ainda estou a ver Flávio Varzim. Alto, os ombros largos, o sorriso fácil e por isso encantador. O bronze impecável. Ainda o vejo, passeando pela praia, com os seus calções de banho. Azuis. Justíssimos.
Todos os adoravam, todos lhe queriam falar. Rapazes e raparigas. Por isso, o facto de ele me querer a mim dava-me particular satisfação.
"Miúda", dizia-me ele. Ainda o ouço chamar-me. "Miúda". Com o sorriso que eu achava ser o mais bonito do mundo. E estendia-me a mão. Estendia-me a mão enquanto nós ficávamos estendidos no areal, horas a fio. "Sou doido por ti, miúda." E eu sorridente, calava-me. Flávio Varzim, o rei da praia, gostava de mim e eu gostava dele. Fechava os olhos, naquelas tardes alaranjadas, quando o sol começava a sua rota descendente, sentindo Flávio ao meu lado. Sentindo e ouvindo. Flávio Varzim adorava falar. E se sobre ele, ainda mais. Daí que não desdenhasse nem a atenção, nem a paixão que rapazes e raparigas daquela praia lhe devotavam, prontos a beber-lhe cada palavra. As raparigas cada vez com um ar mais aparvalhado, os rapazes tentando encontrar uma posição que lhes disfarçasse a erecção. Ou que desesperadamente lhe tentavam tocar quando nadavam ou jogavam à bola.
Mas eu sabia que, em eu aparecendo, Flávio Varzim olharia para mim e tudo nele sorriria, a fremente corte relegada para segundo plano. "Chegaste, miúda..." Despedia-se apressadamente de quem com ele estava, se se chegasse a despedir. Levantava-se de um salto, esticando os ombros largos, e chegava-se a mim.
"Ainda bem que chegaste. Estava à tua espera, miúda."

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Fantasia estival para N. - 4

Flávio Varzim. No tempo em que eu conhecera o presidente da câmara, Flávio Varzim era o rei da praia.

Fantasia estival para N. - 3

Hoje olho para trás e vejo que tudo o que aquela costa tinha de ordenado e composto, encontrava a sua correspondência no domínio do inesperado, do subversivo. Não poderia ser de outra maneira. Aliás, nesse dia do primeiro passeio tive mesmo disso um primeiro vislumbre. Depois de visitar igrejas e ruínas medievais, procurei um café para preencher o restante tempo de espera. Como a rua abafava, o café era fresco - tudo como devia ser. Sentei-me na frescura e fiz o meu pedido.
O rapaz que me serviu era moreno. O cabelo era negríssimo e a pele tinha um tom ligeiramente encardido, onde brilhava o branco da camisa. Percebi, em dado momento, que se encostara ao balcão e me fixava com todo o à vontade. Era magro, adivinhei-lhe o corpo enxuto debaixo da camisa, mas era o olhar fixo que não desanimava. O olhar meio transviado, meio voraz dos que desejam. Um pouco perturbada por aquele olhar negríssimo na frescura daquele café espelhado, virei-me e fixei as minúsculas bolhas que enchiam o meu copo de água gaseificada. Só conseguia pensar numa coisa, em como aquele rapaz estava cheio de sexo. Estava mesmo certa de que se a ele me dirigisse e lhe perguntasse como se sentia, ele responderia "estou cheio, repleto de sexo". Sorri ligeiramente com esse pensamento e como o coronel me ligava entretanto, saí dali com pressa, aquele olhar despudorado perseguindo-me.
O coronel era finalmente meu e fomos passear a pé pela marginal, que serpenteava ao longo da costa. O pôr do sol pintava o horizonte de rosa e laranja. Como o dia começava a findar, uma brisa fresca se levantava e o coronel passou-me o braço em redor dos ombros. Falávamos. Falei do meu dia, do que vira. O coronel trouxera-me àquela que fora em tempos a sua costa e começou a discorrer sobre ela. Episódios soltos. A voz do coronel era bonita e reconfortante, enriquecendo as histórias com o timbre afável. Os momentos de partilha não eram habituais no coronel, pelo que, naquele fim de tarde, eu nos sentia mais próximos. A presença do coronel fazia-me bem. Sentir o seu braço à volta dos ombros, ouvir a voz que saía de uma boca tão perto da minha, ia ao meu interior puxar qualquer coisa de comovente e de comovido. Eu não sabia muita coisa sobre o coronel e aquela costa (três anos depois eu ainda não conhecia a casa). Saber mais alguma coisa, enquanto o mar que vinha roçar os molhes murmurava e a brisa soprava com doçura, fazia-me sentir menos pequena face a serviços completos de loiça italiana, fossem eles quantos fossem. Um pouco mais segura, mais corajosa talvez.

As recordações, como são sempre, acabaram por ser interrompidas por outra lembrança do coronel, algo que ele entretanto se esquecera de me comunicar. Falou de uma festa, referiu o presidente da câmara municipal. Como caminhávamos lado a lado, o coronel não viu o ligeiro sorriso que esbocei ao ser mencionado o autarca da vila onde rapazes cheios de sexo serviam à mesa em cafés.
Pois o coronel não sabia que eu conhecia aquele sítio. Eu já ali tinha estado antes.
O coronel não sabia que, em tempos, eu conhecera o actual presidente da câmara.

sábado, 17 de maio de 2014

Fantasia estival para N. - 2

Já estávamos casados há três anos, mas eu nunca ali tinha estado. É possível que o coronel associasse àquela casa um monte de memórias difíceis de arquivar. Não sei. Mas uns negócios na vila vizinha (por essa altura ele tinha um alto cargo na administração de uma construtora) tinham servido de pretexto para a nossa vinda. E assim que decidira ir, disse-me que queria que eu o acompanhasse. E como o coronel era meu marido e eu gostava dele, acedera.
No terraço em que tomava o pequeno-almoço sozinha, limitava-me a observar o que me rodeava. Havia árvores e relvados, outras casas não muito distantes. Ao longe, ouvia-se o mar, naquela manhã nitidamente revolto. Eu sozinha e o mar ao longe. A calma sabia-me bem. Sabia-me bem estar ali, bebendo café de chávenas de loiça italiana, enquanto um largo guarda-sol me protegia dos raios solares. Estava sozinha porque o coronel se levantara cedo para ir até à vila. Era o que vinha acontecendo todas as manhãs.
Sozinha, lavei a loiça do pequeno-almoço e saí de casa. Explorei as redondezas. Havia outras ruas com outras casas, todas parecidas com a do coronel. Pertenciam todas à mesma época, aos últimos anos daquela costa como refúgio isolado dos ricos. Acho que nalgumas delas, cheguei a ver estampados semelhantes nas cortinas das janelas e, julgo que noutras, era possível que famílias tomassem refeições servidas em loiça italiana. E eu ali.
À tarde, passada a hora de maior calor, desci até à praia. Era tudo muito bonito e muito calmo. Ao olhar o mar, sentia um grande carinho pelo coronel, que até ali me trouxera, decerto sabendo o quanto o sítio me ia agradar. O coronel era assim, genuíno e devotado, tanto quanto o era o seu amor e isso deixava-me profundamente feliz. Uma felicidade que todo o cenário vinha ajudar a compor.
Ao regressar à casa pequena mas espaçosa, o coronel já me esperava para jantar. Sorrimos ao ver-nos.

No dia seguinte, disse-lhe que o queria acompanhar à vila. Ele disse que sim, mas que não poderia ficar comigo. Eu respondi-lhe que não fazia mal, que aproveitava para passear e ficar a conhecer a localidade. Fomos. Vesti-me um pouco melhor, demorei um pouco mais a arranjar-me. Não sei ao certo porquê.
Chegados à vila, separámo-nos. O coronel foi aos seus negócios, eu fui ao meu passeio, começando por aquilo a que se convencionou chamar centro histórico. A vila vivera ressabiada durante o setembrismo, mas não hesitara depois em arvorar como figura primeira da terra o grande (e renegado) tribuno de Setembro durante o consulado cabralista. Era um facto que constava de todos os manuais de história, mas quanto ao qual a papelada que me deram no posto de turismo era omissa. E, de facto, lá estava a estátua desse homem, a quem praticamente tinham reescrito a história ainda em vida, polida e erecta no centro da principal praça do burgo, que já fora da Constituição, da Regeneração e da República e à qual, por esses dias, um grupo de académicos e empresários tentava rebaptizar com a designação setecentista de Santa Eulália.
Isso em nada interferia com o meu passeio, que com muita calma decorria.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Fantasia estival para N.

Olhava-me no espelho e pensava "esta não sou eu". Ali naquela casa, não era eu. Naquela casa, sentia que tinha entrado num outro mundo, misterioso, incerto. Não sabia ao certo porquê. Seria pela decoração? A casa fora decorada pela primeira mulher do meu marido, via-o no estampado das cortinas e na loiça italiana.
O meu marido, o coronel, trouxera-me com ele até àquela casa. Uma casa não muito grande, mas espaçosa, próxima do mar.
Era a primeira vez que eu via aquela casa. O meu marido, o coronel, ia tratar de negócios. Depois da carreira no exército, o meu marido, o coronel, tinha entrado nos negócios. Mas dos grandes. Tão grandes que havia dinheiro para tudo. O coronel tinha tanto dinheiro que eu não precisava de trabalhar.
Por isso, ali estava eu, naquela manhã de sol, depois de ter dormido até mais tarde, a tomar o pequeno-almoço no terraço, em loiça italiana que eu não tinha escolhido.