sexta-feira, 27 de abril de 2012

Hotel na areia 10

No dia seguinte, quando acordámos, chovia. Era uma chuva compacta e interminável que mal deixava ver a areia da praia do outro lado da rua. Naquela manhã não haveria praia.
Eu acordei primeiro - eu acordava sempre primeiro, evitando ser surpreendido. Quando me apercebi da chuva, cheguei-me a ele, ao seu corpo quente. O quarto tinha pouca claridade, era tudo sombra. A calma era tremenda, mas apetecível. Havia o burburinho permanente da chuva e, para além dele, alguns passos no corredor ou a água que começava a correr de uma torneira noutro quarto.
O quarto, a chuva e nós na cama.
Aquela não era a primeira manhã de chuva que partilhávamos na cama. Não, a primeira fora mesmo há já o que parecia ser uma eternidade.
Tinha sido algum tempo depois de nos conhecermos. Ele vivia numa casa partilhada nessa altura e lembro-me que de manhã o quarto estava cheio de uma luz cinzenta porque chovia do mesmo modo implacável. Mas não havia ali qualquer tristeza. Lembro-me de ele ter desaparecido para a cozinha, onde preparou o pequeno-almoço. Eu saí do quarto para ir à casa de banho, voltei e enfiei-me na cama, olhando a janela e ouvindo os ruídos de loiça a ser colocada numa bancada e torradeiras que estalavam. Porque a casa era partilhada e o nosso acontecimento recente, nesse dia ele trouxe-me o pequeno-almoço ao quarto. (Algum tempo depois passaria a comer as torradas na cozinha.) Também por ser recente ele tentava impressionar-me com aquele gesto. Não que ele precisasse de fazer o que fosse para me impressionar, bastava-me vê-lo entrar pela porta do quarto iluminado por uma luz chuvosa. E ele entrou, com um tabuleiro cheio de comida.
Fomos comendo e ficando por ali. E como tudo era tão novo e tão bonito... E como estava tanto frio e chovia tanto, mas não havia problema nenhum. Tínhamo-nos um ao outro e naquele quarto de casa partilhada, isso bastava.
Naquela manhã chuvosa de praia, depois de ele acordar deixámo-nos ficar na cama a conversar e a sorrir. Descemos para o pequeno-almoço e, depois disso, voltámos para o quartinho. Depois do almoço parou de chover. O ar estava fresco e o cheiro a mar era particularmente forte. Metemo-nos no carro e fomos explorar a costa de granito rosa, de guia na mão, máquina fotográfica e tudo.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Hotel na areia 9

Irreversível. Tão irreversível como uma noite de Março. Naquela escuridão diurna, o homem moreno que tinha uma seara de pêlos no peito e outra no baixo-ventre pedia de mim apenas uma coisa. Ele não o dizia. Já o dissera. Fora mesmo com isso que nos levara até ali. Antes de sairmos de Lisboa tinha dito:
- O que nós precisamos é de uma férias longe de tudo. Uns dias, apenas.
Estas frases eram ditas imediatamente após mais uma cena de gritaria e choro, que naqueles dias tendiam a repetir-se. Por esses dias, o que me parecia é que ele não se calava nunca. Falava até muito para alguém que, chegado a um areal bretão, faria largo uso do silêncio.
- Férias? Para quê?
Instalados junto à praia, ele limitava-se a falar de banalidades, de factos da vila e da região que coligira na sua pesquisa e, de vez em quando, recordava alguma coisa do nosso passado. Mas pouco. Eu percebia que ele fazia aquilo com um propósito - falando pouco, limitava-se a existir junto de mim. Era uma estratégia nova para que eu fizesse o que ele queria. Ali, isolados do mundo, eu deveria perceber o que havia de tão importante e vital entre nós. Eu acedera a fazer a viagem, no fim de contas.
Quando fazia as malas em Lisboa, desejava ardentemente que aquelas fossem as malas que eu preparava para a minha saída daquela - da nossa - casa.
- Estive a ver sítios. Seria como um retiro. - Ele estava sentado no sofá, a cabeça nas mãos, os olhos gastos de chorar, enquanto ao caminhava furiosamente de um lado para o outro. Furioso e sem saber o que fazer. Ou sem coragem para o fazer.
O que sei é que dias depois metíamos as malinhas no carro e partíamos para Saint-Michel.
Ele só queria que eu o amasse e eu limitara-me enfiar uns pares de calças num saco de viagem.

domingo, 1 de abril de 2012

Hotel na areia 8

Num desses dias, numa dessas vezes em que eu me desfazia na banheira e ele cirandava despido pelo quarto, não resisti. O silêncio no quarto era quase total, ouvia-se o murmúrio do mar. Noutro quarto alguém fechou uma gaveta com força.
Ele chegou-se à porta da casa de banho e, ao fixarmos o olhar um no outro, encostou-se com os braços cruzados. Sorri-lhe, não resisti. Ele sorriu-me.
A imagem - a ilusão - era quase perfeita. Ele a sorrir-me, eu numa banheira a sorrir-lhe, uma casa de banho de quarto de hotel, ele nu e lustroso a fixar-me. A luz do compartimento era esbranquiçada como a daquela pastelaria do centro de Lisboa onde primeiro tínhamos falado, onde primeiro nos tínhamos olhado e sorrido. Sim. Não resisti. Pois.
Ele entrou no compartimento e aproximou-se do espelho, procurando a sua imagem na superfície embaciada. As várias horas de praia começavam a escurecer-lhe a pele, a marca dos calções vermelhos era já perfeitamente visível e, do sítio onde estava, eu via-lhe as nádegas redondas e bonitas. Não resisti.
- Tenho pensado na noite em que nos conhecemos. - A voz saiu-me rouca e pouco clara. Ele não se virou. - Aliás, tenho pensado muito em toda essa altura.
Tinha sido a altura abençoada. E eu acabava de cometer uma falta grave - eu sabia disso. Mas não tinha resistido e agora não podia voltar atrás. A verdade é que a casa de banho oferecera naquele momento um espaço de ilusão. Sei que me convenci de como o rumor das ondas que vinham bater à praia era benigno e o cheiro da humidade das madeiras e dos atoalhados era um aroma feliz de paz e felicidade doméstica.
Ele virou-se e olhou-me sério. Os olhos iluminaram-se de novo num sorriso. Aproximou-se da banheira, baixou-se apoiando um joelho no chão. Os nossos rostos ficaram próximos e ele envolveu-me nos braços.