segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Junho

Estávamos no início de Junho, mas o tempo era ainda incerto. Por isso usávamos camisolas de malha sobre as camisas. (Lembro-me bem da tua camisola azul-escura, da camisa branca. Os ténis, deliciosos, eram verdes.)
O refeitório por essa altura era já pouco frequentado, ainda menos àquela hora adiantada, e estávamos sentados perto da janela. A avenida era um rio correndo a nossos pés, os farrapos cor de cinza que iam preenchendo o céu rendilhavam a luz solar. Era início de Junho e por isso tão fácil de fazer da realidade o que quiséssemos. Só porque a ordem do mundo permitira aquele encontro. E eu ali óbvio.
- Queres uma batata frita?
E chegaste o prato sorrindo. Naquela batata mal frita eu via o sentido de tanta coisa, a explicação da metade do mundo que me estava sendo ocultada.
Mas se o tempo era ainda incerto - e aqui reside a questão essencial desta história - antes chovesse. Se havia alguma ordem no mundo, que se juntassem as nuvens que faltavam para que chovesse. Porque mais valia que chovesse e que a tua malha azul ficasse coberta de pequenas manchas. E que eu não estivesse no sítio onde estava, à espera de te ver passar.
(Põe tu aqui um insulto, que eu não consigo.)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Se entrar numa sala e ouvir a sua voz

O problema foi e será ter sonhado em demasia.
A fantasia é um sucedâneo perigoso do sentimento.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O primeiro pronuncia-se

Estou aqui, mas não vai acontecer nada. Lamento. Pode parecer contraditório com a minha presença aqui, mas não é - tinha de vir dizer-lhe isto.
E se digo isto com a chávena de café girando entre os dedos é porque não é fácil vir aqui dizer-lhe isto. Mas sim, tinha de o fazer. Está a rir-se de mim.
A minha condição não me torna capaz de resistir à desconcentração, não tenho esse dom. Quando cheguei ao mundo, já tinha escrito em mim que na escola primária com dificuldade não olharia para os cartazes e toda a papelada e bonecada afixada nas paredes. E que depois, no liceu, seria a janela o meu quadro preferido. Pelo cordão umbilical chegavam-me os nutrientes e esta apetência para a desatenção.
Ri de novo, claro. Contudo, já deverá ter percebido que foi essa companheira de nascença que motivou toda esta situação. Que é essencialmente por causa dela que aqui estou.
Também porque valorizo atitudes como a sua. E até lhe digo mais: estava em casa desocupado e furioso com a vida. Assim, tout simplement. E pensei que mais valia vir aqui dizer-lhe isto. Se não o fizesse ficaria a pensar, a pensar, a pensar, a imaginar, como é próprio de uma pessoa desenhada como eu. Não me parecia ser essa uma boa opção, até porque chovia, e assim é da maneira que corto a imaginação e as fantasias por onde devem ser cortadas.
Porque não pára de me perguntar isso? Se vim até aqui?
A minha justificação é idiota? Concordo. Mas queria testar a sua validade.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Quase tão normal como o sol nascer todas as manhãs

Cada vez me convenço mais de que sou, de pleno direito, um habitante da Cidade Silvestre.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O quarto, o saguão e a chuva

Mesmo antes de abrirmos a porta e entrarmos, eu sabia que havia uma felicidade latente em todos os objectos, prestes a ser feita verdade.
Havia um quarto, nada mais. Um quarto e lá fora um saguão e o céu cinzento. Um quarto que nos pedia que fossemos dele. Se desligar as luzes para escrever, mais depressa me revejo na sua penumbra. Em tudo uma espécie de perfeição, mesmo no estampado da roupa da cama, na não-vista da janela, sobretudo na penumbra. O cenário de tão inaudito era incrível e ele bastava para que eu quisesse ser invejado.
Só por isso, porque dava vontade de uma pessoa se sentar no chão e verter lágrimas; um gesto simples e primitivo, só porque era tudo tão perfeito. Estarmos deitados na cama não era mais do que completar essa perfeição.
Ainda que chovesse durante a noite e de manhã, tudo era bom e bonito e o quarto bastava-se a si próprio, sobretudo pela sua penumbra. Porque das paredes (ao ponto de uma pessoa se querer sentar no chão e verter lágrimas) em vez de algum fungo provável, era amor que brotava. Por isso, tudo era bom e essa etiqueta punhamos, generosos, em cada coisa.