quinta-feira, 13 de março de 2014

A segunda dirige-se à primeira 2

Não consigo evitar um ligeiro esgar de desprezo quando recapitulo essa história que insiste em contar e recontar, juntando-lhe sempre novos detalhes. Eu sei que a diligência que coloca nesse relato e em completá-lo a cada nova lembrança recuperada é uma tentativa desesperada de me convencer da veracidade do sentimento que os uniu - a si e a ele. Desesperada. Poderia ser outra coisa? Quando essa história já não existe e dela nada resta fora as lembranças - essas dolorosas companheiras - e um rasto de podridão?
Eu própria recapitulo essa história, de tanto a ouvir. Acho que há algo de perverso nessa insistência da sua parte em falar-me do que se passou, de tudo o que aconteceu. Eu sei que me quer desanimar. Eu sei que na sua cegueira, você não se conforma e tem pavor e raiva da felicidade alheia.
Uma questão que se coloca - talvez a mais importante e aquela que mais interrogações me desperta - é a de um certo temor calado que percorreu a vossa história desde o início. Por favor, não repita, não articule nunca mais esse temor. Não me volte a dizer em que consistia. Não me conte novamente como lidava você com ele. Não. Por favor. Cale-se. Não é preciso. Eu sei. Eu sei. Eu sei. Eu já sei.
É que a senhora não calcula a tristeza que apenas a ideia de tal coisa me traz. É um misto de pena, compaixão, mas também - não se surpreenda, já lho disse - de muita incredulidade e algum desprezo. Não faz sentido. Não faz. E só me leva a continuar a chamar-lhe senhora. Não quero que nada nos aproxime, que nos liguemos. Por isso trato-a por senhora. Tratarmo-nos por tu seria tornar-nos praticamente irmãs, companheiras de alguma coisa e não o somos. Só estas conversas que temos já são uma violação grave da ordem natural das coisas.
Gosto de tratar as pessoas por tu, gosto que me tratem assim, é verdade. Mas não lhe posso permitir tal coisa, quando o que você faz é querer que eu me sente consigo para que me possa contar a sua linda e bizarra história de amor.
Não. Não chore. Por favor.