sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A segunda dirige-se à primeira.

Vim aqui dizer-lhe que não. Não quero fazer parte da sua história. Ela dá-me dó e, consequentemente, algum asco. Acho-a - a si - um pouco fraca, mas não tanto como a acho estúpida.
Não há outra forma de dizer isto.

idas ao âmago.

Punha-me a pensar e pensava como é do quotidiano que me alimento. Achava que bastava as pessoas serem cúmplices e confiarem uma na outra. O resto viria por si.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Pedro e Carolina 5

Um detalhe pouco lembrado da vida de Pedro é a relação que manteve com Luisinha Zanetti no início de 1924. Pedro rendeu-se-lhe com o mesmo deslumbramento que Carolina viria a suscitar nele quase dois anos depois, se calhar até mais. Ele era então mais novo, mais inocente. E melhor pessoa, estou em crer.
Não se sabe muito sobre Pedro e Luisinha, talvez porque o facto de ela ter acabado por cometer suicídio, ao despertar as mais vivas curiosidades e especulações, inibiu a maioria de fazer perguntas de forma mais aberta.
Luisinha era encantadora. Era assim que quase todos a lembravam. Mas uma parte desse encanto estava nos olhos permanentemente tristes, que só de vez em quando brilhavam acompanhando um sorriso. Para Pedro, ela foi a coisa desconcertante que lhe passou pela vida. Porque sentia. Por sentir, o jovem Pedro Vasques não podia limitar-se a dizer muito clinicamente que ela era depressiva, um pouco histérica, talvez louca, e que ele em nada era responsável. Não. Porque sentia, Pedro lia tudo à luz dos sentimentos e os estados inconstantes de Luisinha eram para ele uma partida de paciências a ser resolvida e nos quais ele era parte implicada, pelo caminho causando nele grandes estragos. Porque havia alturas em que ela simplesmente desaparecia, dizia que não o queria ver mais. E, noutras, agarrada a ele, falava de medos em frases bastante bem articuladas, mas de sentido frequentemente imperscrutável. Pedro amava e seguia devotadamente o trajecto de cada lágrima ou a sonoridade de cada gargalhada. E tentava ajudá-la, sem saber como. Fazia-se e desfazia-se, tentando perceber se ela estava magoada com algo que ele dissera ou se simplesmente não lhe apetecia sair de casa.
Antes de tomar o destino nas próprias mãos, Luisinha usou uma delas para escrever um pequeno bilhete a Pedro, isentando o jovem de qualquer responsabilidade no seu fim. Era uma carta até bastante lúcida, própria de quem percebeu a dor insuportável de viver de olhos marejados.
É demasiado doloroso falar desse momento e de falar de Pedro nele. Mas aconteceu. E toda a gente sabia e, entrando num restaurante ou numa festa, viam nele o sobrevivente ou o cúmplice de um insucesso que muito comoveu o Chiado e os salões lisboetas daqueles dias.
Carolina sabia da história, como toda a gente. Aliás, numa das primeiras conversas que teve com a sua prima Rita a propósito de Pedro, a filha do meio dos Zanetti fora logo mencionada, mancha e sombra no percurso do médico. Mas Carolina gostava dele e isso bastava-lhe. Tanto que ela estava viva e a outra morta. E por isso nunca lhe perguntou.
Porém, foi algo que sempre a intrigou. Tinha, mais que curiosidade, verdadeiro interesse. Mas o que começou por ser respeito pela dor e pelo silêncio, tornou-se num aparente desprezo deliberado por uma história. A resposta a esta questão, ao porquê de Carolina nunca ter interrogado o médico do Chiado acerca de Luisinha Zanetti, não é simples. Não pode ser simples. Mas é um facto que ela nunca puxou desse assunto. Durante o período em que ele lhe fazia a corte, teria sido assunto por demais indecoroso. Depois, quando Pedro se entregava com facilidade a devaneios íntimos e deixava escapar alguma alusão a como não gostava de alguém assim desde Luisinha ou como Carolina era para ele algo que a outra não fora, a irmã de Tomás ficava muito séria e calada, sem saber o que dizer. Talvez temesse essa figura, que ela lembrava vagamente de ter visto num baile, e do lugar que tivera na vida, nos sentimentos de Pedro.
Pedro chegara-lhe às mãos bem partidinho, Carolina sabia-o. Mas talvez o amor que lhe tinha a deixasse vagamente envergonhada com a ideia de poder amar e estar casada com alguém que precisava de ser curado. E isso complicava a sua relação com a memória da outra. E sem saber o que fazer, ainda que adivinhando uma mágoa, uma dor no marido, Carolina acabou por nunca dela se aproximar.
Devia ter falado, perguntado. Por que nunca o fizera? Estes pensamentos tinha Carolina ao fim de vários de casamento, moravam então já na Rua de São Ciro (durante os primeiros quinze anos de casados, tinham vivido perto do Largo do Andaluz) e Pedro seria também já deputado à Assembleia Nacional.
Carolina pensava nisso à noite, com as grandes janelas da sala de jantar abertas para a noite estival. Carolina encostava-se ao parapeito e olhava a escuridão das traseiras, ouvindo o rumor da brisa fresca nos vultos da árvores, ao de leve iluminadas por algumas janelas àquela hora ainda amarelas. Sentindo essa brisa que vinha aliviar a atmosfera depois dos dias quentes, Carolina acendia o cigarro, um hábito que ganhara, não em nova quando andavam todos a fazê-lo, mas bastante mais tarde. Pensava no marido e em Luisinha. Imaginava o que teria sido terem falado sobre eles, ela ter-se disposto a fazê-lo. Teriam as coisas - ou alguma coisa - sido diferentes? Porque temera tanto ela essa pessoa enterrada desde Maio de 1924 nos Prazeres? Ela que estava ali, em plena década de 1940, numa sala de jantar de mobília pesada e na lista de tudo o que era recepção de embaixada ou inauguração de obra pública.
E se falasse? Sozinha na sala de jantar que, pelas janelas abertas, recebia o ar fresco da noite, Carolina pensava: e se falasse? Se lhe dissesse. Pedro, fala-me da Luisinha. Se lhe perguntasse. Pedro, por que se matou a Luisinha? Pedro, tu gostavas dela? Tu sofreste, Pedro?
E se. E se. Ainda estava a tempo. Eles estavam ali os dois, vivos e juntos.
Mas não o fez. Fosse pela passagem do tempo e pelo que ela trouxera, fosse para não lhe dar essa satisfação, fosse por algum despeito ainda existente, fosse pelo medo do que poderia ouvir, não o fez.
O cigarro terminado, esmagou-o no cinzeiro. Lançou ainda um olhar aos vultos das árvores, apenas levemente distintos por se agitarem ao sabor da brisa, e fechou as janelas da sala de jantar. E saindo, apagou a luz.