sexta-feira, 18 de julho de 2014

O Recolhimento

Visitação - Senhora D. Luísa...
Luísa - Estão a rezar. Quem reza?
Visitação - As senhoras do Recolhimento.
Luísa - As senhoras?
Visitação - Sim, as senhoras. Senhoras, moças... as pobres que aqui vivem.
Luísa - Senhoras... casadas com fidalgos?
Visitação - Pois. Casadas com fidalgos, viúvas de fidalgos, órfãs de fidalgos.
Luísa - Viúvas... Palavra terrível.
Joana - E porquê falar em viuvez, minha senhora?
Visitação - Viuvez?
Luísa - Oh... É o meu medo. Temo-a, apenas isso.
Joana - Porquê agoirar? De nada serve agoirar.
Luísa - Ele volta logo, ele volta logo.
(pausa)
Joana - E os aposentos da senhora, irmã?
Luísa - A irmã falava das senhoras que rezam. A quem rezam elas?
Visitação - A quem rezam?
Luísa - Por que rezam? Que pedem elas?
Visitação - O que lhes disser a alma.
Luísa - Poderei juntar-me a elas, a essas mulheres de fidalgo? Eu também sou mulher de fidalgo. E quero rezar por ele. Tenho tanto medo.
Visitação - Claro.
Joana - Ele volta em breve, minha senhora, não deve preocupar-se.
Visitação - Volta?
Joana - Volta.
Luísa - Sim, eu sei que volta. Rezarei por isso mesmo.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

um dia feliz.

Não se esqueça de nada. Não se esqueça do percurso do comboio. Eu sei que é difícil, as paisagens sempre se assemelhando umas às outras. Mas se não reparou nos cambiantes de colinas e arvoredos, é porque provavelmente ia distraído observando quem o acompanhava. Demorando o olhar em cada detalhe do rosto, dos braços, das mãos que se seguravam com força e vontade. Não se esqueça disso também.
Não se esqueça da confusão da gare à chegada, nem do rio de gente que levava até ao mar. Não se esqueça.
Não se esqueça de como o sol brilhava com invulgar fulgor nesse dia à beira-mar. Não se esqueça de como a visão repentina do mar causava comoção.
Não se esqueça de como andaram de lá para cá, sem rumo certo ou previsto, as mãos sempre dadas com força e vontade. Não se esqueça sobretudo do molhe, do enorme molhe - a que chamam pier - onde o buliço era tremendo e tremenda era a excitação. Não se esqueça de nada. Do odor do mar, do sabor do peixe frito, do ruído generalizado.
Não se esqueça de como, sempre de mãos que se procuravam com prazer e vontade, subiram e desceram as ruas dessa estância balnear, onde, mais do que para ver, havia coisas para sentir. Não se esqueça do que sentiu. Não se esqueça.
Não se esqueça sobretudo de como se estenderam sobre as pedras que faziam a praia, as ondas rebentando poucos (pouquíssimos) metros abaixo dos pés. Não se esqueça da quietude - da plenitude - desse momento. De como silêncio e murmúrio bastavam naquela praia de pedras ruidosa. Lembre-se de como (coisa singular) não se falou de passado, de medo, de insatisfação, de temor. Não se esqueça da preciosidade que tal momento constituiu. Não se esqueça do que o inspirou. Não se esqueça.
Não se esqueça, por fim, de como chegaram cansados e embriagados de felicidade ao comboio, onde comeram com vontade e, de novo, não terão atentado nos detalhes da paisagem. Não se esqueça do que nesse dia ficou reiterado e consagrado e de que o mais importante estava naquele comboio e não fora dele. Não se esqueça. Não se esqueça.