domingo, 9 de setembro de 2012

O terraço

Garanto que desta vez não vou recorrer a outras referências, para que tudo saía mais puro, menos cínico e sem o peso das comparações que, se trazem informação, correm igualmente o risco de reduzir a intensidade do relato.
Por isso, basta-lhe saber que, naquela noite, acabámos por nos encontrar todos num terraço. Estava tudo muito calmo e o facto de, entre os quatro, haver uma quinta vida em gestação parecia deixar toda a gente mais bem-disposta e faladora. A ideia de um bebé que se avizinhava dava a todos uma garantia de futuro, uma crença na evolução das coisas e na possibilidade de felicidade, fossem quais fossem as circunstâncias políticas, económicas ou culturais. O facto de um homem e uma mulher se juntarem e conceberem uma vida ascendia à categoria de dogma e ao conforto que lhes está muitas vezes associado.
Nesse quadro de paz que se desenrolava sob a frescura do luar, a minha história era inexistente.
Ninguém teria de saber que eu, inadvertidamente, me apaixonara, que não tinha dado grande atenção aos sinais de perigo e que, quando dera por mim, já não me pertencia. Ninguém teria de saber isso, que fora paixão o que me acontecera (hoje posso chamar-lhe isso, sem qualquer dúvida) e que eu nem a percebera logo. Tinha percebido depois e com essa descoberta sofrido. Mas ninguém teria de saber isso naquele terraço fresco e aberto para o rio. Os outros - o homem, as mulheres, o bebé que numa das barrigas crescia - não saberem era quase o mesmo que eu não saber e estava o caminho aberto para que a minha história nem sequer existisse.
Era melhor que o terraço, o luar, o rio, o ar fresco e humedecido prevalecessem. Era melhor que a futura mãe me sorrisse e abrisse muito os olhos enquanto nos falava, o futuro pai tivesse uma camisola de riscas azuis e brancas e que a jovem com um vestido de renda preta partilhasse com a outra histórias de maternidade na família. Porque, como já disse, havia um bebé entre nós e isso deixava toda a gente meio drogada de felicidade. A minha história não existia. As pessoas que nos rodeavam eram inofensivas, figurantes necessários ao nosso quadro de simpatia e confiança, e a música que passava no terraço não era nenhuma melodia que me lembrasse como as minhas esperanças tinham sido vítimas de um mau jardineiro.
O trabalho para apagar a minha história revela-se moroso e, naquela noite de terraço em que eu achava que ela poderia existir um pouco menos, ela não queria. Porque o jardineiro que deixara que as minhas esperanças crescessem e se tornassem viçosas sem depois cuidar delas achara por bem dizer-me na noite anterior que sentia a minha falta. Era um jardineiro mau e cruel. E essa crueldade renovara a existência da minha história e da minha dor. Afinal do mal também se alimentam as plantas.
Nós os quatro no terraço éramos bonitos e mais bonitos ainda por haver um bebé entre nós. Havia vestidos pretos com rendas, camisolas de padrões navais, camisas vaporosas e calções que estrategicamente acabavam um pouco acima do joelho. A futura mãe bebia água com limão e o terraço era banhado pelo luar, pela humidade fluvial e pela música. Sei que falámos de bebés, da cantora que víramos actuar, de bisbilhotices várias, de Margarida que viajara até Israel. Brotávamos beleza e eu pensara que o luar trataria de não alimentar as plantinhas que eram as minhas esperanças, aquelas que agonizavam em terra pouco fertilizada. Mas quem diria que, mais poderosa que o luar, era a crueldade de um mau jardineiro?
A minha história existia e com ela a minha impotência. Os barquinhos que cruzavam o rio escuro eram mais voláteis que a minha dor e que o meu peito feito canteiro espezinhado.
Eu bem queria que bebés em gestação e camisolas às riscas fossem mais importantes, mas a minha impotência era maior. Acabei por confessar na varanda "Porquê?", mas somente à minha companheira de vestido com rendas, pois ela sabia da história. Sabia. Os outros permaneceram sem a saber. Apesar de tudo, eu ainda acreditava que esse era um passo para que ela acabasse por desaparecer.
Se um homem e uma mulher se juntam e concebem uma vida, como não podem um homem e outro homem juntar-se e conceber simplesmente amor?

sábado, 1 de setembro de 2012

Um par de calças amarelas

Na outra noite, ao descer uma rua na zona do Bairro Alto, vi um par de calças amarelas pendurado num estendal. Esse par lembrou-me um outro, um que eu desejara ver no chão de uma sala, de um quarto, do que fosse. Lembro-me delas, das calças, porque foi o que primeiro vi, o que primeiro me chamou a atenção. Eu podia mesmo dizer que tinha sido um par de calças que a mim se dirigira e perguntara:
- Já chegaste há muito tempo? - Se dissesse isso não estaria a fugir grandemente à realidade.
Vai-me dizer que falo sempre de memórias e de lembranças, vai-me dizer que escrevo sempre sobre o mesmo. Eu sei. É possível que seja verdade. Mas falo-lhe das lembranças por serem o que ficam, por serem esses insectos voadores que esvoaçam em torno do ranço dos sentimentos. São esses pequenos seres com asas que me levam a escrever, admito-o.
Lembro-me bem porque a manhã desse dia fora especialmente triste e a tarde ameaçava ser uma continuação dessa tristeza, pois estávamos no pino do Verão (ainda se usa essa expressão?), a pior altura do ano para alguém se meter em aventuras, e a avenida era apenas um murmúrio e uma brisa.
Se o par de calças que aquele outro num estendal me lembrara tivesse ficado algures numa interrupção da circulação ferroviária suburbana, a avenida teria continuado apenas a ser murmúrio e brisa. Mas não. Os maquinistas estavam concertados para que essas calças se atravessassem no meu caminho e o seu esquema cromático não deixasse de me perturbar. Tomei esse sacrifício para que os passageiros dos comboios desse dia chegassem onde tivessem de chegar.
Foi um efeito notável, o causado por essas calças. Não por essa primeira visão, mas pelo rendilhado de sentimentos em que me lançaram. Havia algo de imperceptível no dono dessas calças e odiei-me assim que reconheci essa imperceptibilidade e o que nela me atraía.
Porque eu queria, deixei. Deixei que a avenida e todas as outras artérias da cidade deixassem de ser murmúrio e passassem a ser ruído. E ainda que nem sempre compreendesse esse ruído, eu desejava-o, como apenas o desejo sabe ser. Porque eu estive a tempo de parar isso, eu sei que estive. Mas não quis. Esse meu desejo por amarelo (por coincidência uma das minhas cores preferidas) não quis que eu parasse enquanto era tempo.
Assim condenei a minha mão a controlar-se cada vez que queria alcançar a dele. Doía-me o desejo porque o ruído com que ele enchia as ruas, os jardins e os cafés continuava imperceptível. Eu tentava captar coisas bonitas por entre o ruído. Julguei ouvir uma ou duas. E depois quis julgar ouvir mais. Eu julgava julgar. Pois apercebi-me de que, ao abrir uma lata de atum, já não podia voltar a fechar os meus sentimentos dentro de mim, tal como já não poderia voltar a fechar o atum oleoso dentro da lata.
Como julgava ouvir e julgava julgar (não vou questionar a veracidade dessas captações), construí pequenas imagens de partilha e murmúrio. Sim, construí. Diga-me, nunca construiu? Pois.
Há muita coisa que eu não sei e é com alguma frequência que as minhas tentativas de perceber o que não sei saem goradas. Não basta saber que é amarelo. Tal como uma busca ziguezagueante por um elemento biográfico de um funcionário superior dos caminhos-de-ferro (aqueles que o meu coração poupara num determinado dia de Verão) dera muitas vezes em nada, as minhas tentativas para perscrutar entre o amarelo foram infrutíferas. Tinha apenas pistas, incoerentes, incompletas, inimigas. E eu só queria saber porque é que isso fazia delas tão apetecíveis. Eu sei. Eu sei. Eu sei. Mordo o lábio para controlar o choro. Eu sei.
Eu sei.
Não, não é isso. Se uma lágrima me quer galgar a face é porque me comove o mistério das coisas. Apesar de tudo, eu acredito na bondade dos comboios; muitas vezes eles me levaram a momentos que brilhavam de inocência e felicidade. Acredito e é por acreditar que não percebo como o murmúrio passa a ruído e este a silêncio.
Com a mesma facilidade com que tinha descido de um comboio que respeitava escrupulosamente o horário e tomara conta de mim, o amarelo não fez caso dos meus anseios e partiu. Antes de o saber, eu já o sabia. Sabia-o desde que ouvira o ruído impenetrável. Mas o amarelo sendo uma cor tão bonita e por isso enganadora, eu precisava de saber, mesmo já o sabendo. Só para saber. E poder dizer à minha mão iludida "vês?".
Como já sabia, lembrei-me de uma canção e fiz como ela dizia, fazendo com que fossemos a um jardim. Nada nessa escolha foi inocente: para além de ser um jardim como a canção sugeria, era um que eu sabia poder facilmente cobrir com melhores recordações por ser o meu habitual ponto de encontro com uma amiga nos fins de tarde do início desse Verão que começara abençoado e caminhava agora para o desastre.
Nesse jardim, já nem apareceram as calças amarelas. Ele tinha trazido outras. Foi então que me apercebi de como aquela cena de jardim era terrivelmente semelhante a uma outra, aquela em que Onegin vem ao encontro de Tatyana depois de esta se lhe ter declarado. Quis rir-me como essa ideia. Tanto nós como eles estávamos num jardim. E tudo o que havia de mais blasé e displicente em Onegin, havia nele. Tal como havia em mim o mesmo temor que havia em Tatyana que, coitada, ainda foi obrigada a dançar com ele depois de ele a rejeitar.
Não alcançando ele a eloquência de Onegin, a cena perdeu em qualidade, mas o resultado foi o mesmo. Muito laconicamente me foi anunciado que aquele amarelo não seria meu e, nesse momento, todas as ruas, jardins e cafés se encheram de um ruído estridente que eu queria apagar. Porque o ruído, como eu imaginava, era enganador e estava agora por todo o lado, troçando de mim e das minhas construções em amarelo.
É por isso que me comovo e mordo o lábio. Porque de tardes vazias e silenciosas facilmente se fazem longas horas de ruído e destas rapidamente apenas ficam lembranças e frustrações. Como a mancha de óleo que escorreu da lata de atum para o pano. Ou a hora de sono perdida para comprar essa mesma lata. Ou o par de calças amarelas que nunca caiu em nenhum chão, nem de uma sala, nem de um quarto, nada. Ainda assim, os comboios permanecem bondosos. A eles nenhum rancor guardo.
Aborrecem-me apenas os bichos alados a que chamamos lembranças, esses que são atraídos pelo ranço dos sentimentos. É por isso que escrevo. Para que as lembranças sejam apenas isso, percam as asas e fiquem onde as quisermos. Para que a sensação de tristeza deixe de o ser e se torne também ela numa recordação dela própria.