quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Chá com Joaninha

Do que eu preciso é que me cantes uma canção. Não uma qualquer, mas uma em particular.
Era nisso que eu pensava quando Joaninha Apolónia decidiu interromper a solidão dos meus dias e entrar pelo quarto adentro. Conseguiu mesmo, ainda não sei bem como, enfiar uma mesinha redonda junto à janela. Uma mesa sobre a qual estava disposta uma comprida toalha branca e um serviço de chá. Não a consegui demover de mudar as cortinas para outras, de um branco vaporoso. A claridade do quarto tornou-se irreal, parecia que estávamos à beira-mar.
Sugeri que mais valia colocar a mesa na varanda, do outro lado do vidro. Não era tão mais agradável?
- Ele que te leve lá para fora. - Foi esta a sua resposta.
Percebi então que havia ali um meio-termo, um ponto de moderação que Joaninha Apolónia não ousava ultrapassar. Porque não lhe competia. E Joaninha Apolónia era uma autoridade nestas coisas, fora colega e confidente de Margarida Cavaleiro. Enfim, sabia do que falava.
Por isso sentámo-nos, tomámos chá e conversámos (mais ela do que eu), sob aquela irreal luz esbranquiçada.
Depois de ter saído ("tem paciência"), só as migalhas sobre a toalha e o fundo das chávenas amarelado. E aí - o quarto ainda cheirando aos vapores do chá - decidi que era inútil lutar contra a decisão já tomada. A de esperar por ti, para que me cantasses a canção, me levasses lá para fora.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Acerca da identidade sentimental

(Para V.)

Reporto-me à história do minhoto que diz ao outro à saída da Exposição do Mundo Português (Lisboa, 1940): "agora tu já sabes o que é ser português".
Eu tinha uma exposição maior para mostrar. Mas desvalorizei à partida a busca da identidade nacional, pois por mais que procurasse apenas encontrava peças de uma outra identidade, praticamente tropeçava nelas. Fosse num antigo palácio real, numa exposição comemorativa, num eléctrico centenário ou num cinema municipal, nada me dizia (e até podia dizer) portugalidade. Eu apenas descobria a construção da identidade sentimental.
Por isso, nem sei se alguém ficou a saber o que é ser português. Eu, pelo menos, fiquei a saber outra coisa.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Regresso à casa na praia II

Havia até aquele irresistível toque passadista de comermos em loiça que outrora servira a tripulação e os passageiros do Princesa do Douro.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Regresso à casa na praia

(Para M.)

Talvez porque hoje chove, falo-vos da casa na praia, onde, apesar do Estio, tudo era humidade.
Os mesmos odores, os mesmos sons. E o mesmo quarto ao fundo do corredor, mantido no penumbra. Os ritmos abrandam nesse reduto de calma. Há placidez conducente a uma espécie de felicidade em todos os gestos, estar simplesmente deitado sobre a cama é algo impossível de ser desvalorizado.
E depois, à vinda, após nos termos sentado em redor de uma mesa com tarte de maçã para seis, o tempo estava assim, cinzento.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A luz das lanternas

O estabelecimento tinha um pátio fechado e tudo parecia roxo. A única luz provinha de lanternas de papel vermelho e branco e havia almofadas por todo o lado. (Parecia que a equipa do Querido, mudei a casa tinha passado por ali.)
- Traga-me um x, por favor. - isto foi dito à empregada, cada um cumprindo o seu papel.
Porque de outra maneira seria difícil gozar a luz das lanternas ao ar livre, naquela noite quente de cidade alentejana. Tudo certo. Era imperativo que assim fosse, que tudo estivesse nos devidos lugares, cada um cumprindo o seu papel: a empregada, as paredes roxas, o céu estrelado, as almofadas, nós.
Apenas para sentir. Qualquer movimento brusco é interdito.
- Mas como tu, acho que não encontro outro. Por isso promete-me...
Eu calado, nada mais. Desejando que as luz das lanternas de papel, o quase-rumor da conversa vizinha e a brisa soubessem expressar a minha gratidão.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Heranças


Herdei da minha mãe o apego ao Estado, à lei e às instituições.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O Verão que não foi na Beira VI

O novo cenário a que eu me referia era um daqueles apartamentos sempre na penumbra e a cheirar a passado, daqueles que existem na Lisboa de Ressano Garcia. Determinados romances portugueses gostam até de colocar no interior desses apartamentos alguma velha tia.
Mais exactamente, o cenário em questão era a sala. Nessa sala foi-me feita uma oferta: "venha conhecer a ilha", disse ele. Sim, depois desse percurso que começara numa escadaria numa tarde de calor e que recordo com especial carinho, convidava-me a conhecer a ilha.
A ilha devia esse nome à sua extraordinária localização. Estava a vários metros de altura, fazendo com os ruídos do exterior apenas chegassem em surdina. Mas sobretudo, todas as suas janelas davam para o mar, do qual se avistava uma larga faixa. Não estou certa de conseguir transmitir-lhe a beleza da vista... É que era possível uma pessoa sentar-se à mesa e só ver mar, mar, mar e algum barquinho que por lá andasse e no horizonte o sol a por-se.
Tem de admitir que um convite para conhecer a ilha era demasiado aliciante.