quinta-feira, 22 de julho de 2010

Estudo sobre Gonçalo II

Passaram-se dias sem que o tivesse visto uma única vez. E nem o seu nome sabia... Não esqueçamos que Doroteia levou uma semana a perceber de quem se tratava. Para além disso, na sua astúcia, ponderou ainda se devia revelar ou não a identidade do jovem à filha do visconde de Lavínios. Nisso, passaram-se mais uns dias até que Leonor fosse informada. Doroteia lá acabou por decidir que mal não faria.
Mas como dizíamos, vários dias se passaram e Leonor sem ver o jovem que na festa tão forte impressão nela causara.
Baseada nas impressões, entregou-se por completo à imaginação. Pegando no que lhe ficara daquela noite de tanta elegância (comprovada pelas referências em vários jornais dos dias seguintes), Leonor dedicou-se a recuperar a imagem de Gonçalo. Os olhos, o sorriso, a voz, a barba. A voz que era tão máscula e suave e lhe soubera falar ao ego e ao coração.
Não se cansou de relembrar as frases que lhe ouvira, os gestos e os olhares. Daí, claro, passou para a criação original de momentos em que o reencontraria. Imaginou os cumprimentos, as várias possibilidades de conversação, até os momentos em que ele se iria rir de algum acertado dito dela.
E já se passavam tantos dias...
Reencontrou-o, sim. E aí a sua imaginação já tinha alterado traços, alguns para melhor, como o desenho do nariz. Mas o que sentiu no peito não deixava espaço para dúvidas: era ele. Ele que no baile lhe falara tão bem ao coração e ao ego.
Mas a isso voltaremos depois.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O Verão que não foi na Beira III

Se estava preparado para reencontrar o jornalista? Digo-lhe já que não, sobretudo por ter sido tão inesperado.
Não foi mais do que isto: virei-me e vejo-o sorrindo para mim. Assim, instantâneo. Sorriu, acenou, sorri, acenei-lhe. Nada mais. Curioso como tal brevidade não deixou de causar o seu impacto.
Como bem sabe, o jornalista em nada está relacionado com determinados acontecimentos recentes, nunca houve sequer escadas em tardes de calor que tenham testemunhado qualquer encontro com ele.
Daí que seja tudo mais engraçado, o reencontro apenas veio enriquecer este Verão que não foi na Beira, tornando mais nítidas as partes envolvidas e tudo o que entre elas está em jogo.
Já agora, pare de lhe chamar jornalista, ele é apenas um aspirante. Quanto a mim, vou interpretar o reencontro como um sinal para deixar de usar chinelos.
(Mas agora diga-me com franqueza: porquê?)

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O Verão que não foi na Beira II

Transportou consigo o torpor daquele quarto de hotel, cujas janelas não tinham o tamanho suficiente e davam para uma avenida por demais buliçosa.
Tanto tempo que ficavam estendidos sobre as camas... depois do pequeno-almoço, antes do jantar, moles sob o ronronar do ar-condicionado.
Sim, transportou-o. Porque se deixou essa cidade de ócio, as questões cujas respostas tentava encontrar espelhadas na superfície do rio não dispersaram. Daí que tenha transportado o torpor. Que fazer face às questões insoluvéis senão dormir?

terça-feira, 6 de julho de 2010

O Verão que não foi na Beira

Para aceder à cafetaria, tem de descer à cave, como bem sabe. Pela porta que fica no corredor das exposições (também ele teve a sua importância). Desça as escadas, é por aí, de certeza que até consegue ouvir alguma voz, a máquina do café chiando e as chávenas tinindo. Se às tantas ouvir passos que se aproximam, tanto melhor, apenas se aproximará mais da realidade. Essas escadas que fazem esquina e são iluminadas por uma janela rectangular de vidro fosco.
É a velha questão da sobrevivência das coisas imateriais, como já vimos pisando e repisando. Se as memórias se extinguirem, extinguem-se aquelas escadas relativamente frescas que fazem esquina, no preciso momento daquela tarde de excepcional calor.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

"Get, pois"

Nem sequer estamos numa cidade tropical. Essas fantasias sequenciais de gordos e jornalistas não fazem sentido.


"Laisse ces désirs éphémères
à la porte de ton couvent."
(Manon na ópera Manon, acto I)